O canto gutural, ou também conhecido como difónico, acredita-se que possa ter mais de 4000 anos de antiguidade e terá a sua origem na zona que envolve a actual República de Tuva e o sudoeste da Mongólia – regiões de Khovd e Govi-Altai. Conhecido localmente como Khoomei, este tipo de canto permite à voz humana executar até três tipos de sons independentes, resultantes de uma apurada técnica que mistura vários mecanismos de movimentação do abdómen, garganta, cavidade nasal, lábios e língua.
Dispersa nos dias de hoje por várias partes do mundo, a técnica é não só popular, como ainda muito utilizada na Ásia Central, nomeadamente na Mongólia, onde está muito ligada à música tradicional do país e ao seu símbolo maior: Gengis Khan.
The cheerful song from my soul
Alguns especialistas no estudo do canto difónico defendem que o Khoomei estará intimamente ligado ao animismo, que nesta região do globo está particularmente identificada com a espiritualidade dos objectos e sons da natureza. Durante a actividade do pastoreio é frequente os mongóis procurarem rios, quedas de água ou subirem montes, para deste modo criarem um ambiente mais apropriado ao canto e fazerem do seu corpo e espírito o seu próprio templo.
O Khoomei está dividido em vários estilos e diferenças na técnica utilizada para o canto. Alguns dos exemplos mais relevantes são:
Sygyt
É uma técnica vocal capaz de emitir dois sons em simultâneo, sendo constituída por uma fundamental * média e que resulta numa espécie de assobio muito agudo – sygyt traduzido para português significa assobiar. O som é muito cristalino e enquanto elemento terrestre, está associado ao canto dos pássaros ou à brisa da estepe.
Khoomei
Não se trata, em exclusivo, do nome genérico dado ao canto gutural na maior parte de Ásia, mas também num dos estilos ou técnicas amplamente utilizados. Parecido com o Sygyt, resulta numa sonoridade clara, mas de harmónicos difusos e com uma ou duas oitavas acima de uma fundamental *. Durante a execução, são ouvidos dois ou mais sons em simultâneo e o vibrato rítmico efectuado pela língua, procura imitar o galope dos cavalos ou o vento a rodopiar nas rochas.
Kargyraa
Este estilo de canto, que significa “expectorar”, é aquilo que se poderá considerar o oposto do Sygyt e Khoomei. A técnica utiliza a contracção da laringe, as cordas vocais e cordas falsas, de forma a produzir um meio-tom com exactamente metade da frequência da fundamental *. A voz é assim projectada desde o peito e resulta num som muito grave e profundo. Este estilo está ainda intimamente ligado ao canto budista tibetano.
Ezenggileer
Trata-se de um estilo vibrante, que para ser executado exige uma grande habilidade e destreza, pelo que raramente é escutado. Uma boa execução da técnica passa por movimentos rápidos e precisos da língua, sendo utilizada como caixa de ressonância a boca e a cavidade nasal. O estilo está associado à imitação do som das esporas quando se monta a cavalo, pois ezenggi significa espora.
Chilangyt / Chilandyk
É um estilo muito associado à sonoridade efectuada pelas crianças da Mongólia e República Tuva, quando procuram imitar os adultos que cantam Khoomei. Trata-se de uma mescla das técnicas Kargyraa e Sygyt que tem por base o som grave e profundo da primeira, mas um posicionamento da língua usual da segunda, para assim dar à música uma melodia mais harmónica. A execução da técnica procura ainda imitar o som produzido pelas serpentes – chilangyt traduzido para português significa serpente.
Embora durante o período em que a República Tuva e Mongólia estiveram subjugadas ao domínio soviético, o canto gutural tenha estado à beira da extinção, pois muitos dos que dominavam as técnicas acabaram por ser perseguidos e até mortos, a história conseguiu salvaguardar as tradições e fazer perdurar a vontade do destino. Nos dias de hoje, há uma grande internacionalização dos músicos que exploram a tradição do canto gutural, e as novas gerações, não só fazem questão em praticar e aprender as técnicas, como as olham como motivo de orgulho nacional.
* Frequência Fundamental, ou simplesmente Fundamental, é a frequência mínima e máxima que compõem a série harmónica de um som. Estritamente do ponto de vista técnico, a fundamental corresponde ao primeiro harmónico e é responsável pela percepção que se tem da altura de determinada nota, enquanto os demais harmónicos têm a ver com a forma da sinusóide que compõe o som.
** Todas as músicas e demonstrações áudio apresentadas neste texto são executadas pelos grupos Alash e Tyva Kyzy.
Bom, gostei de ter lido sobre esse provável surgimento do gutural. Antes eu apenas conhecia o gutural na música, para ser mais específica, no gênero Metal e seus derivados. Talvez o gutural tenha surgido dentro da cultura Mongol mesmo, mas não entendo como chegaram a incluir o gutural nas músicas [black metal, death etc..] .Queria algo que especificasse isso.
Enfim.
Parabéns, eh sempre bom conhecer culturas mais aprofundadamente. Obrigado por disponibilizar o trabalho gratuitamente.
Que som diferente. Bom, ótimo, ouvi-lo. Como entoar?