Volvidos os três espectaculares dias dentro de um barco que navegou através do Rio Ucayali, promovido a Amazon uns 60 quilómetros antes do destino, atracamos serenamente no cais de Iquitos. Seguiram-se as despedidas junto das várias pessoas que fomos conhecendo durante esse pequeno período de tempo, uma primeira adaptação ao cenário envolvente e o caminho até ao centro da cidade.
Em Iquitos, o primeiro sentido a despertar foi o olfacto e não tardamos muito a perceber porquê: aparentemente todos mandam tudo o que é lixo para o chão, não havendo uma cultura mínima no que respeita à preservação do meio ambiente. Seguiram-se a audição e a visão. E porque!? Porque a realidade dos factos aponta para um crescimento exponencial da cidade de Iquitos, facto com o qual está a relacionada uma literal invasão de mototaxis e vespas. Automóveis não há muitos e é raro vê-los. De qualquer modo, Iquitos é uma cidade que, apesar de se apresentar cheia de movimento, não deixa de ter alguma atractibilidade. É bonita, coloria e até os mototaxis lhe ficam bem.
Voltando à questão central que nos levou a Iquitos, e enquanto esperávamos que o nosso anfitrião nos contactasse, resolvemos ir a um posto de informação turística para termos uma ideia real do é possível fazer na região. Na nossa mente povoava o desejo em ficar com povos nativos. Já tínhamos ouvido que poderíamos deslocar-nos para um destes povoados, mas não era nosso desejo, de todo, permanecer nos mais turísticos. Havendo possibilidade para tal, nós queríamos ir à raiz cultural do povo e verificar in locoa sua generosidade. Avançaram-nos com o nome de Mama Pasquita e nós nem pensamos duas vezes. Na manhã seguinte, logo ao raiar do dia, já nos encontrávamos dentro do barco que iria demorar umas longas 12h até chegar a sua casa.
Ao chegarmos a “pueblo Chino”, um rápido mecanismo do “passa-a-palavra” entre pessoas fez chegar aos ouvidos do Senhor Walter que teríamos chegado. A sua resposta foi igualmente rápida e não muito tempo depois já se encontrava junto de nós para nos transportar na sua canoa. A parte restante da família foi apenas conhecida na manhã do dia seguinte: a filha, ainda pequena; a mulher, que se dedica ao artesanato, muito bonito e interessante, por sinal; e Mama Pasquita, uma senhora já com alguma idade, descendente de uma povo nativo, o que dificulta um pouco a comunicação pois não fala muito bem espanhol.
Depois de uma abastada refeição, essencialmente constituída por banana frita e ovos estrelados, a qual viemos depois a saber tratar-se de um misto de pequeno-almoço e almoço, saímos com o Senhor Walter para montar as suas redes de pesca. Contudo, não nos ficámos pela parte mais alta do rio e entramos no meio de um emaranhado de árvores, algumas com mais de 15 metros de altura, para encontrar o sítio ideal. Enquanto nos descolávamos serenamente sobre o rio, o Senhor Walter foi aproveitando para mostrar o seu profundo conhecimento do meio onde se encontra ao explicar em detalhe a flora que nos rodeava. Tudo muito interessante e bonito, mas houve um problema: tivemos de estar sempre cobertos pois os mosquitos são verdadeiramente insuportáveis.
Algumas horas depois voltamos ao mesmo local na expectativa de que no dia seguinte houvesse muito peixe para comer. Quando chegamos fazia calor, pelo que estávamos prontos para um belo banho com tudo o que ele tem direito. Embora numa primeira abordagem esta ideia possa soar mal a quem esteja a ler este texto, há que não esquecer o facto de estarmos a falar da selva amazónica. No fundo até é fácil imaginar que num lugar onde não há electricidade, saneamento ou água potável, as coisas têm mesmo de funcionar assim. Aqui a água que necessitamos para o dia-a-dia provém do mesmo sítio, ou seja, do próprio Rio Amazonas. A vida das pessoas que por aqui habitam depende daquilo que a água lhe dá. Não menos curiosa é a clara situação de “água à porta de casa” durante a época das chuvas, facto que resulta da considerável subida do nível das águas do rio. As casas, que se podem tornar ilhas e de onde só se sai com a ajuda de uma canoa, são construídas em altura para que o rio aumente o seu leito sem que com isso haja inundações. Na prática é precisamente neste “água à porta de casa”, alcançado com a simples descida de alguns degraus, que se toma o banho diário. E tem mesmo que ser diário uma vez que se sua muito devido à humidade, o que inevitavelmente também se torna um factor de atractibilidade para os mosquitos – aqueles que têm transmitem doenças como a malária ou o dengue. Enfim, é neste rio que se faz tudo e onde tudo se passa. No fundo estamos a falar do rio que nos dá a água para um banho ou que, depois de fervida, nos “mata a sede”; o rio que leva os nossos dejectos e lixo, que nos permite lavar a roupa e que, no meio de tanta biodiversidade, nos oferece uma quantidade impressionante de peixes para nos alimentar.
Como não seria de esperar outra coisa, a alvorada faz-se cedo e quase sempre ao mesmo tempo do primeiro canto dos pássaros. Assim que o sol nasce também os nossos olhos não convidados a um suave despertar. Coube ao Fred sair bem cedo para acompanhar o Senhor Walter na viagem que confirma o resultado da pescaria. Regressaram os dois com cerca de 40 peixes que, depois se assados em folha, nos souberam muitíssimo bem. A tarde avançou rápido até porque neste tipo de latitudes a vida das pessoas está organizada em manhãs muito prolongadas e tardes bem curtinhas.
Seguiram-se dois dias que foram essencialmente passados em casa e centrados na ajuda da preparação das refeições e na companhia que procuramos dar à Mama Pasquita. Após este período não menos enriquecedor, chegou a hora de pedirmos ao Walter para nos levar a passear na selva. Entre muitas outras coisas, ele tinha-nos falado de uma certa planta que continha água no seu interior e que é muito boa para os olhos. A curiosidade era tanta que, depois de agarramos numa garrafa, no repelente e num casaco, fomos todos passear pela selva. Depois de vermos a sua Chácara – o equivalente às nossas hortas – prosseguimos para o interior da selva na busca da tal liana que contém a “miraculosa” água oftálmica. Quando a encontramos, verificamos tratar-se de uma água cristalina e maravilhosamente boa.
Voltando ao dia-a-dia da comunidade temos ainda de explicar que o hábito alimentar diário passa essencialmente por duas grandes refeições:uma a meio da manhã que, como já referimos, serve de pequeno-almoço e almoço, e outra a meio da tarde, que à semelhança da anterior funciona como complemento do almoço / jantar. Mas não se pense que esta organização tem a ver com carência financeira. Não, nada isso. A explicação é muito simples: como não há electricidade, há uma clara necessidade em ajustar o período em que se fazem as refeições com a luz solar. Além disso, como em certos períodos do ano existem quantidades indescritíveis de insectos, há também necessidade em que as pessoas se deitem mais cedo para se protegerem sob as redes mosquiteiras.
A pior parte que resulta destas maravilhosas experiências é mesmo o tempo que passa a correr. Os dias sucedem-se com uma rapidez difícil de acreditar, mas os que passamos junto à família da Mama Pasquita foram extremamente positivos e gratificantes.
Estava, contudo, na hora de deixar o “pueblo Chino”. Depois de feitas as despedidas, seguirmos em direcção ao Brasil. Queríamos ir até Manaus. Mas como não há barcos nem voos directos, tivemos de atravessar a fronteira Peru – Colômbia – Brasil. Bem complicado… Aqui ninguém sorri e não há grandes conversas. Todos têm um ar suspeito e um olhar frio. Mas há um motivo. Trata-se da fronteira entre os dois maiores produtores mundiais de cocaína (Peru e Colômbia) e um país com uma das mais altas taxas de criminalidade do mundo (Brasil). É na realidade um cocktail que tem tudo para não dar certo. Fomos avisados para termos cuidado e não sair à noite. Infelizmente, e por motivos de força maior (falta de condições de alojamento), eu tive de sair para procurar outro hotel enquanto a Catarina permaneceu no primeiro. Mal entro numa residencial que me pareceu bem, peço para ver o quarto e a luz foi abaixo. Passados uns 10 segundos ouvem-se quatro tiros bem perto. Mais 10 segundos e a luz torna a acender. Mal sai do edifício estava uma pessoa deitada no chão, já rodeada por cerca de 50 curiosos. Ainda a vi tremer e a deixar este mundo. Um pouco traumatizado continuei até o hotel onde estava inicialmente instalado. Optamos por ficar no hotel imediatamente ao lado, que embora fosse caro era seguro. E por ali tivemos que permanecer dois dias à espera que o barco partisse para Manaus. Ficamos quase sempre no seu interior, mesmo durante o dia. Nós só queríamos era sair dali para fora. Chegado o dia, partimos alegremente para a nossa última viagem de barco no Amazonas, pois de Manaus seguiríamos para o Rio de Janeiro num voos que já havíamos reservado.
O Carnaval esperava por nós! Mas antes havia ainda que desfrutar da cidade de Manaus e queimar os últimos cartuxos da Amazónia.