A cidade perdida de Machu Picchu recebeu-nos com uma nuvem em torno da grande montanha, tornando-a ainda mais misteriosa aos nossos olhos. Mas já lá vamos. Vamos começar por partilhar o que foi a imensa caminhada até chegarmos a este local mítico.
A saída de Cuzco deu-se com o raiar do dia 12 de Janeiro. Aliás, para sermos totalmente verdadeiros, há que reconhecer que ainda o Sol não tinha nascido e já nos encontrávamos na rua à espera do autocarro que nos iria levar até Olantaytambo: o ponto mais alto da nossa travessia. Chegados ao destino distribuíram-nos as bicicletas para descermos dos 4.000 aos 1.500 metros de altitude. Foi uma descida simples, sempre em asfalto e com uma vista fantástica. Durante a progressão, sentimos várias vezes a mudança de temperatura no corpo, passamos por cascatas em que nos molhamos todos e deixamo-nos maravilhar por mais esta forte experiência. Para almoçar e retemperar forças, paramos na cidade mais próxima do local onde iríamos passar a primeira noite – Santa Maria.
Depois do almoço havia uma actividade, o rafting. Nós ainda não nos tínhamos decidido se queríamos ou não fazer o rio Urubamba, visto que era opcional, mas já no fim lá acabamos por optar em acompanhar mais nove companheiros de viagem. Entre os dois, eu Catarina, já tinha feito rafting mas o Fred ainda não, por isso, era uma aventura totalmente desconhecida para ele.
Assim que nos aproximamos e vimos a velocidade da água todos se deixaram entusiasmar bastante! Depois do breefing sobre o que nos esperava e das medidas de segurança, era hora de entrarmos dentro de água. Este rio é caracterizado por fazer grandes ondas, facto potenciado pela época das chuvas em que nos encontrávamos. O caudal era elevado e imprimia grande força às águas do Urubamba. O nível apontava para valores entre os três e quatro, já não muito longe do nível cinco, que é o máximo habitualmente atingido em Abril. Estes níveis são normalmente utilizados para a prática do rafting, o que para a estreia do Fred foi muito bom. E para mim também, pois nunca tinha feito nenhum com tanta intensidade. Também temos de salientar a sorte de termos na nossa companhia um professor bastante bom e muito bem-humorado. A descida foi acompanhada por uma grande emoção e conseguimos aproveitar o tempo ao máximo. Pese embora tenhamos chegado bem cansados de mais esta aventura, valeu muito a pena!
Chegados à cidade tivemos ainda de subir um trilho de montanha para passarmos a noite. Subimos mais 45 minutos até a casa onde iríamos passar a primeira noite. No caminho passamos por uma casa que tinha como animal de estimação um pequeno macaco e não um cão ou gato. Curiosamente foi a primeira vez que tivemos contacto com tais primatas. E que simpático ele era. Volvida esta bela paragem continuamos a subir a montanha até onde íamos passar a noite junto de uma família local. Esta ideia de não ficarmos num hostel na cidade e irmos para o cimo do monte para as casas das pessoas, é algo que nos agrada particularmente porque se, por um lado, é uma forma de ajudar as pessoas ao nível monetário, por outro, é para nós uma grande aprendizagem. Significa ainda que ao jantar deixamos de ter no prato um qualquer menu turístico, para em seu lugar desfrutarmos de iguarias feitas à base de produtos orgânicos. Neste caso, e como já nos encontrávamos em selva “cerrada”, fomos servidos com uma sopa de banana, provamos o café caseiro e ainda tivemos oportunidade de provar chocolate feito pelos locais. Amargo visto que é composto por cacau. Foi um dia estafante e cheio de adrenalina, pelo que não será de adivinhar que caímos redondos na cama.
No segundo dia, quase inteiramente destinado à caminhada, a alvorada foi bastante cedo pois havia que tomar o pequeno-almoço (omeletas com tomate, chá de coca para a altitude e mel caseiro) antes da partida. No fim deste delicioso “banquete” o nosso guia aproveitou para nos mostrar os frutos e plantas que existem na selva da região, nomeadamente uma planta que no interior é composta por uma substância alaranjada e que os locais utilizam para tingir os têxteis. Para nós, a planta serviu não só para pintarmos a pele e começarmos o dia com alegria, mas também para repelir os insectos, pois é outra das funções para que também é utilizada.
Equipados, cheios de protector solar e mais um pouco de repelente “comercial”, iniciamos o longo dia de caminhada que tínhamos pela frente. Sem grande esforço, começamos muito bem, com uma subida que nos levou aproximadamente 1 hora a fazer, tendo sempre do nosso lado esquerdo um enorme precipício. É espantoso como a civilização Inca conseguiu construir estes caminhos, as dificuldades com que se tinham de deparar e a rapidez com que os percorriam. Em bom rigor estamos a falar das auto-estradas do seu tempo, pois eram os seus únicos meios de comunicação.
A acompanhar-nos no percurso tínhamos dois guias: o principal, que falava castelhano e inglês; e o secundário que só falava castelhano. Isto acabou por se tornar numa vantagem porque, como éramos os únicos latinos do grupo, acabamos por também a ser os únicos que falavam com o guia secundário. Tínhamos, portanto, um guia privado. Mais, a experiência permitiu-nos um contacto muito mais privado e particular com a selva.
Antes de pararmos para o almoço, ainda durante o percurso, aproveitamos para apanhar umas quantas nêsperas e ainda comprar umas mangas a uma criança, junto a uma banca improvisada. Já de estômago cheio, ao invés de continuarmos logo monte a cima, monte abaixo, aproveitamos para descansar perto de uma hora e nos prepararmos mentalmente para a tarde que se seguiu. Contudo, esta segunda parte do dia foi bastante simples.
Andamos muito, mas sempre ao lado do Rio Urubamba – curso de água com 724 quilómetros, que passa por Cuzco, por uma grande faixa de selva e que por ser não grande tem vários nomes, entre os quais, Urubamba, troço compreendido entre a cidade que lhe dá o nome e Machu Picchu. Quando chegou o momento de o atravessar não o fizemos sobre uma ponte e muito menos a pé; fizemos sim sentados num banco de reduzidas dimensões, através de um sistema de cabos de aço, quase a lembrar o slide. Aqui chamam-lhe elevador. Chegamos assim à parte final do nosso dia, mas antes de decidir a forma em como iríamos chegar a Santa Teresa, tivemos oportunidade de parar numas piscinas de águas termais, onde relaxamos os músculos e digerimos a grande caminhada que tínhamos feito. A chegada à cidade de Santa Teresa, local onde pernoitamos no segundo dia, estava dependente de duas opções: seguir a pé ou de carro. Acabamos por achar a segunda hipótese demasiado tentadora para não dizer irresistível. Embora cansados devido ao estafante dia, houve ainda que arranjar ânimo porque a noite estava reservada para a “socialização”. Entre uns quantos copinhos de cachaça, uma cervejas e um pezinho de dança, as horas acabaram por passar rápido, até que o nosso corpo lá resolveu dizer que já chegava.
O terceiro dia estava destinado para chegar a Aguas Calientes: cidade de onde se parte para Machu Picchu. Para este terceiro dia estava também reservada uma actividade durante a parte da manhã, que consistia em fazer seis escalões de slide. Embora o “filme nos soasse muito bem”, o certo é que já tínhamos feito o rafting, por isso, optamos por antes por fazer uma caminhada. Melhor, essa era a nossa intenção! Mas como o Fred se tinha magoado no dia anterior nos ligamentos da perna direita, optamos antes por pedir boleia até ao início do santuário de Machu Picchu, para que não fossem feitos grandes esforços físicos. Entretanto o resto do grupo foi chegando e o almoço foi realizado já dentro do santuário. Seguiram-se nove quilómetros da caminhada durante a tarde mas, antes de partir, um dos guias optou por esfregar um medicamento qualquer sobre a perna magoada do Fred para que também ele conseguisse fazer esta parte do percurso.
Subimos um pouco e logo tivemos a primeira visão sobre Machu Picchu, bem lá em cima e onde ainda mal dava para reconhecer a cidade perdida dos incas. Os nove quilómetros foram percorridos por um belo trilho, quase sempre junto à linha do comboio – outra das hipóteses para quem quer ir a Machu Picchu –, de onde se obtêm vistas magníficas. Chegados a Aguas Calientes estava tudo mais do que ansioso para o nosso “grand finale”. Por mim, Catarina, estava um pouco preocupada com a perna do Fred e ele também, pois a subida final é a mais complicada de fazer, mas no fundo é também o principal objectivo e desafio de toda esta caminhada. Quando acordamos pelas 4h da manhã, o Fred já tinha tomado uma decisão e optado em subir.
Depois de concluir os preparativos, avançamos em direcção aos mil e oitenta degraus da escadaria que nos aguardava, onde curiosamente o Fred caminhava com menos dificuldade que em trilhos e caminhos planos. Fomos parando de vez em quando, mas a vontade em chegar lá a cima era muita. No nosso pensamento persistia a ideia de que “quando chegarmos ao ponto em que olhamos para baixo e virmos a nuvem a rodear a montanha, vamos ainda ter mais força”. Os ponteiros do relógio avançavam e o pensamento era sempre positivo: “mais um bocadinho”; “estamos quase”; “Machu Picchu é já ali”! Até que chegamos à entrada, mas infelizmente era ainda só a entrada! Teríamos de subir um pouco mais… Chegados, ali estava ela! A cidade perdida, envolta num nevoeiro que lhe dava um ar misterioso. Aliás, misterioso continua a ser também o destino dos últimos habitantes de Machu Picchu, pois desconhece-se o local para onde se terão refugiado. Embora os arqueólogos que se dedicam à restauração da cidade, encontrem quase todos os dias novos indícios, o certo é que muito pouco tem contribuído para a descoberta de novos factos.
Na cidade proliferam construções extremamente bem posicionadas e pensadas para a prevenção de desastres naturais, do culto ao sol ou o estudo das estrelas. A par dos Maias, também os Incas edificavam consoante a posição dos astros e o templo do sol prova bem isso. Este é constituído por duas janelas – viradas para este e para sudeste – que em cada solstício, marcam o início das épocas de seca e de chuva, respectivamente. Para além disso, toda a cidade foi construída nos sentidos Este e Oeste, para que desta forma a terraças agrícolas pudessem receber o sol necessário à produção de alimentos em quantidade para todos.
A civilização Inca não pode nos dias de hoje ainda ser caracterizadas a 100%, visto não existirem dados escritos sobre como se encontrava organizada. Além disso, os próprios incas souberam esconder a sua cultura dos espanhóis, para que esta não se perdesse. Quem sabe se escondidos no meio da selva ainda não existem descendentes? Ou até se muitos desses descendentes não se encontram no meio da civilização onde hoje vivemos?
Machu Picchu quer dizer montanha velha, reflecte esta ideia de antiguidade nas construções que hoje ainda sobrevivem, pois não foram descobertas pelos espanhóis nos tempos da conquista. A descoberta deste maravilhoso lugar estava guardada para o ano de 1911, quando Hiram Bingham, guiado por um pastor e um rapaz de 12 anos, deu a conhecer a cidade perdida ao mundo.
Nós não nos ficamos apenas pelo passeio pela cidade, queríamos mais. Assim, decidimos subir a Huayna Picchu, a montanha icónica das fotos de Machu Picchu. Disseram-nos que seria uma subida bem pior do que a efectuada no início da manhã, mas não foi. Se calhar já estávamos mais susceptíveis à subida. Depois de mais 800 escadas, chegamos ao topo e fomos presenteados por uma paisagem verdadeiramente sublime. Além da magnífica imagem de Machu Picchu, há uma maior noção das montanhas que a rodeiam e até o duro trilho desde Aguas Calientes é possível avistar.
Aqui é tempo de parar, sentar, respirar fundo, tirar umas fotografias e, principalmente, apreciar esta cidade bela. Há muitas perguntas nos vêm à cabeça como, por exemplo, o porquê em ter sido escolhido este lugar para construir a cidade e não outro qualquer? Como terá sido possível mover pedras tão grandes e de onde é que elas vieram? Hoje sabe-se que mesmo entre os Incas, não era todos os que sabiam da existência de Machu Picchu. Apenas a família real e os nobres tinham conhecimento da cidade maravilhosa.
Caminhamos muito, mas não ficamos exclusivamente pela montanha. Achámos que teríamos de explorar um pouco mais e voltamos a subir, mas desta vez, para ver a construção de uma ponte. E se, por um lado, ficamos bastante impressionante pela maneira como a fizeram, por outro, foi um pouco decepcionante pois estávamos à espera de uma ponte, feita de cordas ou algo parecido, que conectasse as duas montanhas. De qualquer modo saímos dali com um sorriso na cara e com espírito de missão cumprida. Era hora de regressar a Cusco e curar as dores musculares. Não iria revelar-se fácil e rápido, sobretudo pela grande viagem de alguns dias de barco até Pucalpa, a primeira paragem na Amazónia, mas alguma coisa tinha mesmo de ser feita.
Já em Cuzco, antes de partirmos, almoçamos uma vez mais em grupo, onde acabamos por provar o prato típico andino peruano – o Cuy. Trata-se nada mais, nada menos, que um porquinho-da-índia, mas desta vez na versão assado. Estava bom, mas não bate a carne de llama.
Antes de finalizar, e em jeito de concluir a crónica anterior, gostaríamos de avançar com mais alguns detalhes sobre a chakana – a cruz andina – que entretanto nos foram dados a conhecer. Soubemos que a chakana também está dividida entre o lado positivo e o negativo. O positivo refere-se ao amor, trabalho e conhecimento, enquanto o negativo resume-se a três ditos essenciais: não mentirás, não roubarás e não serás preguiçoso. Trata-se de seis valores fulcrais nos ensinamentos diários que pais incutem em filhos, bem como em todas as gerações que se seguissem.
Para completar resta último lado da chakana. É onde está presente a solidariedade: a Aini, que significa ajuda ao outro, ou seja, “hoje por mim amanhã por ti” – os indivíduos ajudavam-se uns aos outros, nomeadamente, no cultivo das terras; a Minka, que segue o princípio da Aini, mas mais a nível colectivo – o povo unia-se para se entreajudar ao nível do grupo; e, finalmente, a Mita, que é o trabalho para a sociedade – à semelhança do que hoje fazemos com os impostos, os Incas tinha de pagar à sociedade, em excepções, através de trabalho de voluntariado, ajudando na construção de edifício e templos, por exemplo. Todos eram obrigados a participar.