Com 3600 metros de altitude média no centro da cidade, La Paz é a capital mais alta do mundo. Os montes que a rodeiam facilmente atingem 4000 metros e o Illimani, que ultrapassa os 6500 metros, é o maior de todos eles. Contudo, caso o objectivo seja descer, é fácil atingir os 2800 metros em cerca de 5 minutos de carro. Estranho? Para nós também. Especialmente sabendo que os 5 minutos de carro, seja para baixo ou para cima, representam uma variação de temperatura que pode rondar os 10ºC. Encontramos uma cidade enorme, cheia de movimento. O enquadramento da cidade é bonito e original. Desde os montes que rodeiam a cidade, passando pelos “arranha-céus” do centro que contrastam com as pequenas casas do monte ou acabando no sempre presente Illimani, cheio de neve e visível de qualquer ponto da cidade, quase a funcionar como um ponto de orientação natural, tudo parece ligado harmoniosamente.
Chegamos num lindo domingo de Dezembro. O Sergio e a sua família acolheram-nos e como muitas famílias fazem neste dia de semana, fomos almoçar fora; num restaurante com comida típica boliviana. Neste restaurante comemos o Pique Macho feito de carne de vaca, salsicha, cebola, batata frita, pimentos e tomate. É de comer e chorar por mais! Também comemos Silpancho: uma iguaria igualmente feita à base de carne de vaca, mas espalmada e frita. Foi-nos apresentada a ocupar quase a totalidade do prato e a cobrir uma farta quantidade de arroz e batata frita.
Velma, George, Sérgio e Cláudia são a “nossa família” boliviana; uma família super simpática que nos acolheu como se da sua família também fizéssemos parte. A casa onde vivem faz parte de um belo bairro nas imediações do centro da cidade que, por estar situada num andar elevado, permite uma vista espectacular; tanto de dia como de noite. Daqui é possível avistar os vários montes e suas casas, o Illimani e ainda o estádio nacional que se encontra apenas a um quarteirão de distância. No dia em que chegámos estava a ser jogada a partida da final do campeonato boliviano que, embora não a pudéssemos ver, ouvimos com muita clareza. É engraçado como a família Parrado consegue distinguir quando é golo ou falta; quando uma equipa está a ganhar ou não. É tudo através dos gritos e emoções que as pessoas fazem ouvir durante um jogo: as faltas estão associadas a sons agudos e prolongados; quando é quase golo são sons mais graves; nos golos são sons secos e prolongados; quando há silêncio, significa que a equipa da casa está a perder; e, finalmente, quando há festa, é porque a equipa da casa está a ganhar (no fundo é como em Portugal – só se apoia quando estamos a ganhar).
Fomos avisados que La Paz é uma cidade com muitos roubos, por isso, saímos de casa apenas com uma máquina fotográfica no bolso e com o dinheiro necessário para o dia. Em primeiro lugar passamos pelo Mirador Central, no alto do monte, de onde se tem uma vista espectacular sobre a cidade. Pelas ruas vêem-se os turistas, pessoas brancas e altas, vestidas como os europeus; e os bolivianos, quase sempre de baixa estatura e morenos, com roupas cheias de cor – quantas mais melhor. A Cholita (mulher boliviana) tem por tradição vestir diariamente o seu traje tradicional. Em La Paz há imensas e cada uma tem uma maneira muito própria de vestir, pois existem diferenças consoante a origem e naturalidade de cada mulher. Algumas das diferenças passam pelo formato do chapéu, que pode dispor de abas mais ou menos largas e de tamanhos que vão do muito curto ao muito comprido. As saias variam igualmente no tamanho, no quanto são rodadas ou na capacidade atractiva das suas cores.
Depois da vista panorâmica da cidade, comemos uma Salteña, a empanada local, feita de carne e vegetais. Para nós seria uma empada mas, ao contrário das nossas, estas têm molho dentro o que é meio caminhando para nos deixar todos sujos. No seguimento da experiência, o Sérgio continuou impecável, rindo-se de nós e dizendo: “não faz mal, quando se come pela primeira vez é assim!”
Voltámos para casa para almoçar. O George, “nosso pai” adoptivo, fez-nos o Prato Paceño feito de favas, milho, batatas cozidas e uma fatia (enorme) de queijo frito. Estava tudo muito bom. Seguiu-se um animado momento de conversa até que chegou a hora da Velma e da Cláudia terem de sair para trabalhar. Nós aproveitamos a boleia e, novamente na companhia do Sérgio, fomos passear mais um bocadinho. Passamos pelo Mercado de Natal: um local onde se vende de tudo um pouco – desde comida a enfeites de natal, muitos chocolates e bombons, roupa e coisas para a casa. No local existe também um espaço para jogos, onde desde logo se destaca a área dos matraquilhos. É que, tal como em Portugal, também por aqui há muitos fãs na modalidade! Para terminar a tarde em beleza, e antes de voltarmos a casa, paramos num café local para tomar um Api: um sumo bem quente de milho e canela. Algo muito “rico”!
Por aqui não não existe muito o hábito de se jantar. Vai-se directo para a ceia, onde se bebe um chá ou um café e se comem umas Empanadas Paceñas, feitas à base de queijo. É o suficiente para estar mais que pronto para ir para a cama. Foi para onde nos dirigimos pois estávamos fatigados. Andar por La Paz, sobretudo para quem não está habituado, é sinónimo de ficar super cansado. Enfim, consequências de estarmos cá nas alturas.
No dia seguinte, acordamos e saímos para passear mais um bocadinho. Com o “pai George” fomos comprar o que precisávamos para o almoço, voltado de seguida para casa. Estava na hora de fazermos uma Tortilla! Liderados pelo Chef, almoçamos uma verdadeira iguaria feita de ovo, alho francês, cenoura, um fideo (esparguete em forma de arroz) e uma Chorillana ou refogado com pimento, cebola e tomate. A manhã acabou por se revelar um período de descanso.
A nossa tarde foi feita de passeio nas Calles de Regalos. Às tantas, tudo nos parece igual. O comércio apresenta-se cheio de cores, com objectos muitas vezes também vendidos em Portugal, como é o caso das calças, casacos, ponchos coloridos e os variados instrumentos de sopro. À tardinha, numa praça das imediações, estava a haver um concurso de coros de crianças. Cada coro tinha direito a três músicas de Natal. Ouvimos um bocado a cantaram em linguas como latim, inglês e alemão. Acabamos por não estar até ao fim porque estava frio e a fome começava a apertar. Seguimos directos para a cadeia de fast food preferida capital. Chama-se Pollo Copacabana e é como o KFC mas muito, muito melhor! Uma curiosidade que encontramos na Bolívia é que todas as ruas têm um cheiro muito familiar para nós: existe frango assado em todo o lado, sempre com o mesmo cheiro a nos habituámos.
Quando acordamos no dia seguinte – 21 de Dezembro – demos conta que seria o dia onde supostamente deveríamos continuar viagem. Contudo, a experiência em La Paz estava a ser muito boa, encontrávamo-nos bem integrados e o Natal chegaria dentro de dias. Pensámos que poderíamos ficar mais um bocado e celebrar a festividade em conjunto com a família Parrado. Seria uma experiência bem diferente, pese embora já tivéssemos passado um Natal em Dublin e, no ano passado, em Trapani, Itália.
Depois de nos decidirmos, fomos fazer as compras de Natal, coisa muito fácil pois estávamos na presença de pessoas simples. Depois de compras feitas, junto ao entardecer e na hora de voltar a casa, o tempo trocou-nos as voltas. Começou a cair uma chuva, acompanhada de um granizo, como nunca tínhamos visto antes; as bolas de gelo eram bem grandes, talvez ligeiramente mais mais pequenas do que um berlinde. O nosso ponto de abrigo foi a catedral, que já se encontrava bem cheia, em parte por serem horas da missa. Quando a pequena tormenta terminou havia um manto branco e muito escorregadio na estrada. Parecia mesmo que tinha nevado, pois é a impressão que se tem ao ver o granizo todo junto.
No dia antes da véspera de Natal decidimos fazer o caminho da morte – a estrada mais perigosa do mundo. E não a fomos fazer de carro, mas em bicicleta. Acordámos com um grande sorriso e uma imensa vontade em fazer esta estrada. No ponto de encontro encontramos o resto da nossa equipa, essencialmente composta por malta nova de diferentes nacionalidades: alemães, noruegueses, brasileiros, suíços e canadenses. Tomamos o pequeno-almoço juntos, onde aproveitámos para nos começar a conhecer. Vestimo-nos e fomos para o autocarro que nos levaria ao Cumbre, ponto entalado a 4700 metros de altitude, de onde se inicia a vertiginosa descida de 67 quilómetros com um desnível acumulado de 3100 metros. Chegados ao ponto de partida, já vestidos a rigor, e quase como de ciclistas profissionais nos tratássemos, recebemos o briefing inicial da entidade organizadora da actividade. Sempre efectuada sobre o asfalto, a primeira descida foi espectacular. Normalmente, fazem este troço em aproximadamente uma hora, mas o nosso grupo fê-lo em metade. Foi sempre a abrir! Todos se deitavam sobre a bicicleta para ganhar (ainda) mais velocidade. Uma emoção! E para além disto, estivemos sempre rodeados por belas montanhas e suas cascatas.
Depois de 30 kms em asfalto, chegamos finalmente à famosa estrada da morte. Aqui o asfalto é substituído por terra batida, cheia de pedras grandes, onde só passa um carro e com um precipício lateral com mais de 300 metros. Basta um passo mal dado e… Arrivederci. Acho que o risco é que faz valer a pena passar pela experiência. Os níveis de adrenalina atingem níveis muito altos, pois sabemos que a probabilidade de ir ao chão é grande e que a possibilidade em perder a vida também está presente. Felizmente ninguém do grupo morreu. Verdade seja dita, também escolhemos uma empresa onde em 10 anos apenas uma pessoa teve o azar de perder a vida.
Do nosso grupo só caíram dois. O alemão e eu… Pois! Eu também caí. E o que se pode dizer desta queda? Bem, vi uma pedra no meu do caminho e penso que me deu medo. Fui ao chão porque possivelmente travei como não devia, mas foi mais forte do que eu! E, como não quis deixar a bicicleta, acabei por ainda levar com ela na cabeça. Fiquei com o braço direito bem magoado, em ferida, mas como tinha protecção não foi nada de muito grave. De qualquer forma não voltei a conseguir mexê-lo, pelo que não pude continuar. É por situações como esta que a carrinha, que inicialmente nos transporta até ao Cumbre, segue-nos o caminho todo. Foi pois assim que tive de fazer o resto da viagem. À excepção do braço, toda a parte direita de meu corpo ficou lastimada e com umas valentes nódoas negras. Também acabei por me sentir um pouco mal porque o Fred saiu do trilho para vir ao meu encontro e a partir daqui já não quis continuar. Enfim, bem que que podia ter caído dez minutos antes do fim e não a meio da descida! Mas foi assim que aconteceu e estou contente que tenha, pelo menos, tentado e passado por esta incrível experiência. Agora sei que eu e bicicletas não somos as melhores amigas!
O Natal foi muito bem passado com a “nossa família” boliviana. Fomos todos juntos à sua igreja, onde vimos teatros, ouvimos canções e jantámos. Éramos mais de 150 pessoas. Alguns deles levaram alguns pitéus. A família Parrado levou um grande peru com mais de 8 quilos, que previamente recheou de carne estufada picada, pimentos, cebola, passas e nozes. “Estava muy rico”. No nosso caso, e como eu ainda estava mal do braço, foi o Fred que cozinhou algo para também levarmos. Ainda pensámos em fazer sonhos para não repetir os também por aqui famosos arroz doce e filhoses, mas como tínhamos de sujar e utilizar a cozinha toda – também estava a ser utilizada para a confecção do peru, que demora cerca de 7 horas a estar pronto –, decidimos fazer um salame de chocolate. Adoraram! Fomos nós que partilhamos entre todos, com prioridade para as muitas crianças, pois queríamos que todas conseguissem um bocadinho de chocolate. Não sobrou nada!
Após a da meia-noite e toda a partilha de comidas e sabores, fomos para casa de um familiar dos nossos anfitriões. Aqui sim… Comemos o tradicional prato de Natal, a Picana. Trata-se de um prato parecido com a nossa sopa de carne, pois é feito com carnes de porco, vaca e franco, leva legumes, como a batatas, onde se destaca a Tunta: uma batata branca desidratada e seca. Ficámos junto à irmã da “nossa mãe”. Uma senhora muito distinta com dois filhotes que ansiavam por abrir mais prendas. Não tiveram de esperar muito, pois assim que terminámos de comer, chegou a hora dos “regalos”. Que maravilha, que sorrisos e alegria.
Era tarde, talvez umas 3h30 da madrugada quando chegámos a casa. A recomendação, em tom de brincadeira, era que os visitantes têm de se levantar cedo para ir ao mercado! Já num tom mais sério, lá nos informaram que antes do meio-dia, afinal, ninguém se levantava. Que sorriso que fizemos. Dormimos muito bem e mais ou menos à hora marcada, reunimo-nos à mesa para beber um chocolate quente e comer Panetone, pois trata-se de uma tradição, tal como em Itália. O resto da tarde de Natal foi passado em família, ao que se juntaram uma rapariga Coreana e outra Belga, que entretanto haviam chegado. Afinal, estamos a falar de uma casa internacional cheia de pessoas com um coração enorme, que oferecem o que têm e o que não têm a todos os que por aqui passam.
Durante os dias que por ali nos mantivemos, tivemos uma aprendizagem muito bonita e uma troca intercultural espectacular. Vimos filmes com várias músicas e danças tipicamente bolivianas, como a Diablada, Morenada, Cueca, Kullavada, Llamerada e Caporale, bem como as interpretações de um grupo que fez muito bem à Bolívia chamado “Los Kjarkas”. Quanto a pratos tradicionais, esta “nossa família”, também fez questão que provássemos a sua maioria. Entre eles estavam, o Wistupiku, a Empanada recheada com queijo, o Pique Macho, o Silpancho, o Plato Paceño, típico de La Paz, as Salteñas, o Api, o Moco Chinchin (sumo de pêssego) e a Marrequeta (o pão feito em La paz). Uma verdadeira experiência a não esquecer.