Pela única estrada que liga longitudinalmente o país, seguimos para norte até à cidade de La Serena. Disseram-nos que na parte interior do Chile, em direcção à cordilheira, para ser mais preciso, havia um vale muito bonito: o último antes de começar o deserto do Atacama. É também neste extenso deserto que existem os melhores observatórios astronómicos mundiais, principal motivo a levar-nos ao Vale de Elqui. Contudo, o chamado inverno boliviano, com o seu característico céu coberto de nuvens, fez com que infelizmente tivéssemos de adiar a ida ao observatório astronómico.
Mesmo com muitas nuvens, experienciamos um céu muito estrelado e com lua quase cheia. Agora imagine-se com lua nova e sem nuvens. Deve ser qualquer coisa de paradisíaco. Vamos esperar uns dias e pode ser que tenhamos sorte. De qualquer modo, também não nos podemos queixar muito de sorte. Conto-vos o porquê…
O Chile é um país esguio com mais de 4000 quilómetros de comprimento e aproximadamente 200 de largura. É uma comprida língua de terra, encravada entre o Oceano Pacífico e a cordilheira andina, onde existe uma única estrada longitudinal que liga a totalidade do país, principalmente a partir de La Serena. Assim, com uma única via de comunicação, é lógico que todo o tipo de veículo tenha que aqui passar. Decidimos então tentar “ir a dedo”, como se diz por estas bandas. E é precisamente aqui que continua a nossa sorte. Tivemos de esperar menos de meia hora para arranjarmos a nossa primeira boleia. Um camionista chamada Bernardo, de uma simpatia irrepreensível, deu-nos boleia para 300 quilómetros – cerca de 20% do nosso trajecto. Nas 5 horas e tal de percurso, dispusemos de todo o tempo para falar dos nossos países e culturas. Foi com ele que entramos no deserto do Atacama, um deserto muito belo e o mais árido do mundo. Embora já tivéssemos estado no Sahara, em Marrocos, isto aqui é muito diferente: parece outro planeta, especialmente o início. São montanhas de pedra e mais pedra, de onde só se vê o mar ou a estrada. Trata-se de uma das melhores estradas, senão a melhor, que alguma vez já fizemos.
Como estavam uns insuportáveis 40 e picos graus, e o senhor Bernardo seguia para o interior, deixou-nos na estada principal, mas debaixo de uma ponte. Antes de descer o camião, pensamos apreensivamente sobre quanto tempo haveríamos de esperar para encontrar outra boleia. Foi logo. Diria que 30 segundos será um exagero. Foi apenas este o tempo que tivemos que esperar! Que sorte!
Ainda que só para 150 quilómetros, foi uma grande ajuda. Segundo o que nos contou depois o camionista, por norma nunca pára para oferecer boleia a alguém, contudo, sem saber muito bem porquê, decidiu parar para nos ajudar. Teve um pressentimento que éramos boa gente. Alejandro de seu nome é um senhor com muita fé. Durante um par de vezes vimo-lo estender a mão, como que a cumprimentar outro condutor de camião. Pensámos que era algum conhecido ou assim. Até que percebemos que não era bem isso que estava a fazer; estendia a mão, como que a cumprimentar as pessoas que aí tiveram a fatalidade de perder a vida num acidente. E benzia-se. Foi esta fé que o fez parar quando nos viu, disse-nos ele, apontando para a Nossa Senhora de Carmen, a Nossa Senhora de Fátima Chilena, se é que podemos fazer tal comparação. O senhor Alejandro é um homem que já viveu em vários locais do mundo. Com a consciência de um pai, disse-nos que o norte do Chile é muito violento e cheio de criminalidade. Aqui, os chilenos falam muito com as mãos, um bocado como os italianos, pelo que usava muitas vezes os gestos para nos transmitir a sua mensagem. Deu-nos um amuleto com a Virgem de Carmen e pediu-nos para lhe enviarmos uma Nossa Senhora de Fátima, que muito admira. Por aqui, e pelo que percebemos também na Argentina, Portugal é conhecido não só pelo futebol, mas também pela Nossa Senhora de Fátima, pois trata-se de dois países onde a sua população é maioritariamente cristã. Este simpático senhor deixou-nos numa estação de serviço, local onde sabia que autocarros e camiões passariam para nos ajudar.
Dos três camiões que por ali já se encontravam estacionados, não é que assim que falamos com o condutor de um deles, descobrimos que ia até ao mesmo destino que nós? Pois… É verdade! É aqui que entra o senhor Tito na nossa aventura. Também muito simpático, este camionista deu-nos uma boleia por mais de 600 quilómetros até Antofagasta, numa viagem feita de muita conversa. E embora neste tipo de situações se converse muito, por vezes, é complicado entender todos os amigos que se cruzam no nosso caminho. O chileno fala mais rápido que o argentino, o que por vezes torna difícil apanhar o que é dito. Mas com calma e paciência – essencialmente da parte deles – lá nos conseguíamos entender. O senhor Tito, embora de aparência nova, conta já com seis filhos. Trabalha mais de 16 horas seguidas para alimentar todas as bocas, e folgas, nem vê-las. Talvez uma ou duas por mês, comentou ele. Ao longo do caminho, foi-nos dando muitas indicações sobre onde estávamos, para onde íamos e também nos avisou sobre a crescente criminalidade que afecta o norte do Chile. Aproveitamos, ainda, para ouvir algumas músicas chilenas, portuguesas – muito pela curiosidade do senhor Tito – e também a primeira mão da final da copa Libertadores – o campeonato sul-americano correspondente à Liga dos Campeões europeia –, onde se encontrava a jogar uma equipa chilena que veio a ganhar a partida. Na próxima semana joga-se a derradeira e segunda mão desta final.
Por fim chegamos! Pensamos que já estava tudo. Que era descer, pegar nas malas e procurar um sítio para dormir. Seria esse o desenrolar da aventura imaginada, mas não terminou assim. Visto que as pousadas que ele conhecia estavam cheias, o senhor Tito ofereceu-nos o “tecto” do seu camião, baixando a cama suplente. Disse-nos: estejam à vontade para dormir aqui. Não nos fazendo de rogados, aproveitamos. Foi uma aventura que não vamos esquecer por toda a bondade e generosidade que estes três senhores tiveram connosco.
Antofagasta foi-nos descrita como sendo uma cidade feia. Tinham razão. Aproveitámos, no entanto, para experimentarmos nesta cidade o Oceano Pacífico. Queríamos dar um bom mergulho, mas como a maré estava alta e a puxar, ficamo-nos pelos pezinhos e não foi nada mau. Antofagasta também nos foi referida como uma cidade onde existem muitos ladrões, com muita droga a circular e onde deveríamos ter o maior cuidado possível. Perigosa, ou não, o certo é que vimos dois fulanos de algemas, a serem levados pela polícia para o carro patrulha onde, aliás, já se encontrava uma senhora. Pelo antecipado da hora, pois eram ainda 11 da manhã, é de dizer que por aqui a criminalidade levanta-se cedo. Pensamos para nós: “Temos de sair daqui bem depressa”. Assim fizemos! Enfiamo-nos ao autocarro mais seguro que encontrámos e seguimos em direcção a San Pedro de Atacama.
Estamos a adorar o deserto. Estamos muito ansiosos pelos dias que se seguem.
Votos de bom fim-de-semana.