Por onde começar? Por Proust, que nela encontrou a cidade dos seus sonhos? Por Wagner, que ouvia incógnito as suas próprias composições na esplanada do café Quadri? Por Byron, seduzindo a condessa Albrizzi e, pelo menos, duzentas outras mulheres? Por John Ruskin, tentando desenhar à pressa um sublime edifício do século XV, enquanto os operários o destruíam pedra a pedra, impiedosamente?
Ou vamos ao passado remoto e narramos a história de Dandolo, o Doge de 92 anos, cego, que obrigou os nobres da terceira cruzada a saquearem Constantinopla? Ou falamos de Casanova, de Marco Polo, de Vivaldi, das extraordinárias dinastias de pintores — como os Bellini? A história de Veneza é tão vasta, variada e interessante, que o melhor é escolhermos um pretexto antes de dissertarmos a seu respeito. Ora, na época em que nos encontramos, esse pretexto só pode ser o Carnaval.
A primeira coisa que o interessado deve saber sobre o Carnaval de Veneza, é que este, felizmente, só existe na sua forma actual desde 1979. Felizmente, porque se o leitor visitasse a cidade em mil quatrocentos e tal assistiria a espectáculos tão edificantes como o lançamento de cães a partir de um canhão. Além disso poderia matar um gato à cabeçada (um desporto muito estimado) ou então, num registo mais elegante, ser-lhe-ia concedida a oportunidade de correr à frente de um touro pelas estreitas ruas de Rialto até cair na água imunda de um canal. Bons velhos tempos, que nunca irão regressar.
O auge do Carnaval Veneziano ocorreu no Século XVIII. A cidade teria cem mil habitantes, entre os quais se distinguiam (e como distinguiam) as onze mil prostitutas mais elogiadas do Ocidente. Em vez de uma semana de folguedos, a festa chegava a durar meio ano, o que parece extraordinário (embora não inteiramente desagradável) às nossas sensibilidades contemporâneas.
Teoricamente, as celebrações iam do Natal à Quarta-feira de Cinzas — mas como as máscaras se usavam nos quinze dias a seguir à Ascensão, e como ainda havia as festas de Outono, desde o começo de Outubro até ao Natal, tudo somado resultava nuns seis meses de folias e salamaleques.
Nessas ocasiões, Veneza recebia trinta mil turistas, que ali se deslocavam a partir de toda a Europa. As narrativas dão-nos conta de uma notável extravagância. Até os padres, os núncios papais ou o guardião dos capuchinhos usavam máscaras. Um cronista da época assegura-nos que o próprio arcebispo não reconheceria os seus curas se estes o visitassem de cara destapada.
Este anonimato resultava numa imensa liberdade, em que todos podiam ir onde quisessem e fazer o que lhes aprouvesse, desde que nunca interferissem na política. Não admira que o governo da República encorajasse estes costumes tão frívolos. “Cada um”, diz-nos um contemporâneo, “cumpre até ao fim o papel que escolheu para si. Se falardes com um Arlequim, achá-lo-eis tão ligeiro como um francês e tão chistoso como um irlandês; o Jurisconsulto assume um tom de disputa, o médico tem um ar pedante.”
Os bailes, os festins, as tertúlias nas farmácias animadas por vinho de malvasia, os espectáculos de acrobatas e equilibristas, de astrólogos e improvisadores, de marionetas e cantores, as noites em branco passadas nos casinos e os serões entre a commedia dell’ arte, tudo isso acabava repentinamente na quinta-feira Gorda, em plena Praça de São Marcos, com um fogo-de-artifício e uma largada de toiros a que até os meninos compareciam disfarçados.
O Carnaval em mudança
Em 1979, as festividades reanimaram-se após um longo interregno de quase duzentos anos. A ocupação napoleónica tinha afastado os habitantes da Sereníssima das suas aventuras galantes. Mais tarde, Mussolini proibiu o uso de máscaras em lugares públicos, por temer certamente que atrás dos polichinelos se ocultassem comunistas. Só após a Segunda Guerra Mundial foi recuperado algo do espírito de outros tempos, embora sem a pitoresca brutalidade do renascimento ou os costumes licenciosos do Século de Casanova.
Hoje em dia o leitor pode divertir-se a valer, desde que queira gastar muito dinheiro. Actualmente as celebrações iniciam-se na sexta-feira com a Festa delle Marie, uma procissão que percorre a cidade. A abertura oficial ocorre no sábado, quando uma outra procissão, desta vez mascarada, deixa a Praça de São Marcos por volta das quatro horas. Nos dias seguintes sucedem-se os bailes de máscaras nos principais palácios e hotéis (Palazzo Dandolo, Bauer, Pisani Moretta), bem como as excursões nocturnas de gôndola por um Canal Grande iluminado com tochas e archotes. Os bailes de máscaras são o principal evento da temporada, mas esteja preparado: custam entre 250 euros e 430 euros, dependendo do prestígio do local. Os postos de turismo situados no Molo, perto da entrada da Piazetta ao lado do Palácio dos Doges são habitualmente o melhor local para se informar dos dias, horas e moradas.
Existem várias lojas tradicionais para quem deseje adquirir máscaras de Carnaval autênticas. A maioria situa-se na zona de San Polo, no centro da cidade. A L’Arlecchino (Calle dei Cristi, 1722-1729) assegura-nos que as fabrica em papier maché a partir de desenhos exclusivos, por um preço absurdo. A Tragicomica (na Calle Nomboli, 2800) é uma das maiores e mais assustadoras. No Atelier Pietro Longhi (Rio Terrà 2604/b), pode adquirir espadas e capacetes que combinem com o seu disfarce comprado noutro local. Se gostar de temas mórbidos, recomendamos a máscara do Doutor Morte, inspirada nas que eram usadas pelos médicos da peste por volta de 1630.
Para crianças também
Tem crianças? Em San Polo, uma das zonas mais populares de Veneza, pode assistir aos teatros de fantoches que são organizados para os mais pequenos. Se preferir conhecer o Carnaval de antigamente (mas, sem experiências com animais), dirija-se ao Vecio Carnevale, na Via Garibaldi. E claro, nunca se esqueça de ir à procissão de gôndolas, com passageiros luxuosamente mascarados, que percorre no último Domingo, lentamente, o Canal Grande.
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