Quando estive nas Rocky Mountains (Canadá – distrito de Alberta), depois de uma caminhada de 18 km bem suados, deitado na minha tenda e à luz de um pequeno frontal, numa posição deveras incómoda, escrevi que podia comparar esta paisagem de montanhas a uma égua selvagem, de crina ao vento, olhos brilhantes, veloz como um raio e que, enquanto ela galopasse, selvagem e indomável, o seu relinchar ecoaria por todos os picos das redondezas, apelando aos seus antepassados, com o ribombar dos cascos na resposta do vento. As rochosas canadianas, de facto, não deixam ninguém indiferente, fazem-nos tremer pela sua grandiosidade, e são capazes de nos reconciliar de vez com a vida.
Foi nesse mundo encantado de picos, neve, ursos e florestas milenares que partimos a caminho do lago Cameron, situado no sopé de uma montanha impressionante. Um lago perfeito de beleza. O postal ilustrado por definição, calmo e tranquilo, reflectindo no espelho das suas águas translúcidas todas as alturas ao redor. Um passadiço em madeira entrava pelas águas límpidas permitindo o acesso às gaivotas turísticas e às actividades de canoagem. Um bar servia de apoio. O silêncio era total, cristalino e polido como as águas do lago. À volta, as montanhas escarpadas, paredões descomunais, formando um anfiteatro gigantesco, com as partes mais baixas cobertas por uma floresta densa de pinheiros. Uma mancha de verde que se estendia até meia-encosta onde começavam depois as áreas abertas, de pedra rija, com restos de placas de neve cobrindo as rochas. Qualquer sítio parecido com o Olimpo deve ter usado este cenário como modelo. Só deuses podem residir nestas moradas, nestas altitudes, nestes enormes torreões.
A nossa guia era uma jovem canadiana de porte atlético, traços esculpidos, forte, músculos elegantes e bem definidos, com uma longa crina loura. Parecia uma égua selvagem cavalgando trilhos acima. Uma filha destas montanhas. Pisou-as durante tanto tempo, tanto anos que os seus pés já fazem parte desta cascalheira, destas pedras, destas encostas, desta liberdade.
Seguimos atrás dela, em esforço, que o piso era inclinado. A sorte, foi estarmos protegidos pela sombra dos pinheiros que nos acompanhavam ao longo da montanha que subimos em ziguezague. O sol batia forte e, mais à frente, avistámos uma passagem de cascalho e pedra roliça completamente desnudada.
Terminado o arvoredo atingimos essa encosta despida de vegetação, e com o calor que se fazia sentir comecei a desidratar. Um forno autêntico. Bebi um pouco de água. O que me reconfortava era a vista fabulosa, o panorama impressionante que tinha à minha frente. Uma imagem de puro espectáculo hollywoodesco, com a montanha a descrever um amplo arco que não cabe na retina de nenhuma máquina fotográfica. O dia muito azul reflectia-se lá em baixo nas águas turquesas do lago. Uma perfeição de natureza.
Atingimos a crista da montanha com algum esforço. O cascalho rolava por baixo dos pés, escorregava-se a cada novo passo mas no topo, esperava-nos uma vista deslumbrante, aberta para os dois lados da vertente. De um lado o trilho desde o lago Cameron, do outro a descida até ao vale de Waterton. Foi aí que almoçámos, com uma vista privilegiada.
A descida que se adivinhava é que me parecia um osso duro de roer. Se a subida implicou um desnível de 1000m, para a descida tínhamos 600m. Uma eternidade.
Passámos em primeiro lugar por uma sucessão de pequenos lagos de altitude para desembocar pouco depois num pequeno bosque onde árvores secas, brancas, desgrenhadas, pareciam ilustrar um filme de terror. Depois, entrámos numa floresta de pinheiros. Uma floresta densa onde encontrámos excrementos de urso. Secos. Esses bichos andavam por perto. Mais à frente, dezenas de árvores derrubadas indicavam uma avalanche de inverno.
A descida eternizou-se. Começou a doer-me o joelho direito. Mais à frente, alguém caiu de chapa sobre o cascalho. Enquanto sentia as agruras do caminho, ficava a olhar para aquela guia maravilhosa e a perguntar-me onde é que ela conseguia arranjar tanta força. Andava sempre sorridente, os dentes eram de uma brancura que feria a vista, a sua pele de uma textura semelhante à seda. Enquanto me esvaía em suor, ela, nem uma gota de transpiração deitava. Foi construída no aço, com traços e curvas de ninfa. Igual a estas montanhas. Sólida, poderosa e resplandecente. Os olhos azuis brilhavam como dois diamantes e o sorriso escarlate fazia esquecer a dureza do trilho. O marido conduz o helicóptero que faz os resgates de montanha. Ela, no verão, guia os grupos, e no inverno é instrutora de esqui. Uma vida entregue à acção e à aventura. Não sabem viver de outra maneira.
Faltavam ainda 2 horas para chegar. Uma eternidade quando as picadas no joelho começaram a aumentar de intensidade. O meu cérebro entrou em ebulição e por muita água que bebesse não o conseguia arrefecer. Sentia um calor interno extremo, uma febre que me comia as entranhas. As tonturas atingiram-me de frente e já só era capaz de pôr um pé à frente do outro por instinto, com o olhar preso ao chão. Os olhos ficaram turvos, com imagens desfocadas como uma neblina matinal. Suei tudo o que tinha para suar e bebi tudo o que tinha para beber mas quem quer as Rocky Mountains tem de as conquistar, e as recompensas estão ali a todo o momento.
Atingimos finalmente o sopé da montanha onde veraneantes descansavam ao som das cascatas. Continuei a sentir um imenso calor interno que me devorava as entranhas. Já só ansiava por um bom duche de água fria para acalmar estas brasas.
Quando começou a escurecer, ainda ardia por dentro e por fora apesar do frio que se fazia sentir. Felizmente, a noite anunciou-se cristalina, espalhando o seu manto negro sobre uma grande bola de luz que iluminava o maravilhoso hotel Prince of Wales. Um quadro para sempre guardado na minha memória. Um quadro de natureza em estado puro.
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