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    Categories: Alpinismo

Travessia da aresta Breithorn

Estávamos há três dias no Alpes, em alta montanha entre o Vale de Aosta e o Valais, com um objectivo muito claro: fazer a Travessia Spaghetti. Estava a ser uma semana pouco gloriosa … O tempo esteve mau, triste e agreste, obrigando a alguns dias de reclusão nos refúgios, ao cancelamento mais uma vez de parte da Travessia Spaghetti e a fazer várias travessias de glaciar debaixo de intenso vento e nevoeiro. A situação não se afigurava por isso muito animadora e o meu humor reflectia o mau tempo, ou vice-versa.

Mas eis que, numa mudança de humor repentina, o dia acordou quente, o que não deixa de ser surpreendente depois de alguns dias de tormenta tão intensa. De repente ficou esplendoroso, a comprovar que depois da tempestade vem a bonança. Saímos finalmente para uma bem-sucedida ascensão ao Castor (4282m), renascendo em mim uma bem-vinda e crescente boa disposição, e ânimo para muiro mais, para outros desafios.

No entusiasmado regresso do cume do Castor, quando atravessávamos mais uma vez o glaciar, parámos para admirar a aresta do Breithorn, um dos cumes com mais de 4000m dos Alpes valaisanos – fronteira natural entre a Suíça e Itália, com o Vale de Valais no lado suíço e o Vale de Aosta no lado italiano –, cuja ascensão é considerada acessível. E tendo esta aresta uns contornos lindíssimos, que confesso já andávamos a namorar há dias, estava mesmo a pedir para lá darmos um pulo… “É exequível”, conversávamos entre nós; “podemos ficar no refúgio Klein Matterhorn, aí pernoitar, e fazemos a travessia no dia seguinte, descendo directamente para o Vale de Aosta”…

E foi assim, finalmente num dia de sol radioso, depois da excelente ascenção ao cume do castor, com todos de óptima disposição e uma enorme vontade em fazer algo que nos enchesse as medidas, que tomámos a decisão em avançar para a dupla ascensão dos cumes Ocidental (4167m) e Central (4160m) do Breithorn, aproveitando para fazer a lindíssima aresta que os une. A previsão meteorológica também parecia contribuir para o nosso sucesso, pois esperava-se muito bom tempo para o dia seguinte.

Eu já conhecia o Breithorn Ocidental, e tem um lugar muito especial no meu coração: foi o meu baptismo nos Alpes. Trata-se de um bom cume para aclimatação, fica perto dos teleféricos e não é tecnicamente difícil. Há, no entanto, que não esquecer os mais de 4000m do cume, com tudo o que isso implica do ponto de vista da progressão, pois pode ser um desafio do tamanho de um elefante para quem dá os meus primeiros passos no alpinismo. Foi o que aconteceu comigo, nessa primeira vez! Ainda me recordo do frio que estava à saída do refúgio do Guido Torino e de parar no túnel que passa debaixo das pistas de ski, totalmente enregelada e muito cansada, ainda mal tínhamos começado o desafio! Em qualquer dos casos, o esforço valeu bem a pena e quando cheguei ao cume senti-me bem recompensada: descobri a maravilhosa imensidão dos Alpes num lindo dia de céu azul brilhante.

Todas estas boas recordações ajudavam agora a elevar a expectativa de um bom dia, até porque adoro travessias e arestas! Óptima disposição, muita motivação, boas condições meteorológicas e uma lindíssima aresta: eis os ingredientes certos para um dia perfeito!

E foi um dia assim! Perfeito!

Acordei com a certeza inexplicável que ia ser um bom dia e ao sair do refúgio sorri de confirmação: o nascer do sol estava radioso, pintando de cores quentes o céu azul. Senti uma enorme energia a correr no corpo e uma alegria serena, como de houvesse todo o tempo do mundo. E se é certo que a natureza pode ser benevolente, quando decide ajudar-nos a alcançar as condições perfeitas para um dia de alpinismo – muito sol, boa neve e brisas suaves –, o dia só é bom quando nós queremos que ele seja mesmo bom.

E tudo é prazer num dia espectacular assim. A travessia do glaciar foi rápida e fizemo-la com o nascer do dia, a gozar os passos fáceis sobre a neve dura característica do raiar da manhã, apreciando as nuances de laramja num céu cada vez mais azul, com a luz em crescendo à medida que o sol sobe na linha do horizonte.

Era ainda muito cedo, havia poucas cordadas no glaciar, o silêncio é aboservente, só levemente perturbado pelo som cadenciado dos crampons na neve. São instantes como estes que nos enchem a alma. Isto é felicidade!

Foi com relativa facilidade que cruzamos o glaciar – menos de 45 minutos – e chegamos à base do Breithorn, totalemnte animados para começar a ascensão. Pendente acima, a bom ritmo, lá fomos… E apesar da exigência técnica da subida não ser nada de especial, como sempre, avançamos em segurança com um pé atrás do outro. Estávamos bem aclimatados, com os dias que já havíamos passado entre os 3200 e os 4000 metros, de modo que a subida foi rápida e chegámos ao cume em menos de duas horas. A satisfação foi enorme! A aresta é lindíssima e composta por duas cumeadas unidas – ou separadas de assim preferirem – por algumas centenas de metros, a terminar numas cornijas floreadas. A vista é sublime!

Diria que o que fizemos foi um verdadeiro três em um. Dois cumes e a travessia de uma aresta sob um equilíbrio precário em alguns centímetros de neve acima dos 4000 metros, com vistas soberbas para o glaciar que tínhamos atravessado, de um lado, e para o vale bem lá no fundo, do outro, foi um verdadeiro privilégio. A alegria era contagiante e ninguém ficou indiferente ao deslumbramento das vistas de cortar o fôlego, com quilómetros de visibilidade para todos os lados.

Parámos inúmeras vezes para admirar a beleza da paisagem, para tirar fotografias de todos os ângulos, a cada metro, e só não fizemos o pino porque isso, enfim, seria abusar da sorte. Vamo-nos demorando e deixando ficar. Parámos para comer alguma coisa, prolongando a estadia para aproveitar o momento. Estava sol, estava quente, não havia vento. Estava-se muito bem! É que nem sempre se consegue ficar lá em cima para desfrutar convenientemente: o vento, o frio e o tempo da descida obrigam, quase sempre, a uma disciplina férrea e um rápido regresso. Desta vez ficámos, demorámo-nos e aproveitámos…

E até a descida em passo rápido, quase de semi-corrida, com vontade de deslizar por ali abaixo, foi uma verdadeira delícia…

Esta travessia do Breithorn tornou-se uma das minhas preferidas, a repetir se houver possibilidade, até pelo prazer que tenho em voltar aos lugares de que gosto e que iluminam a paisagem de beleza. Só poderão ser bons momentos a juntar a óptimas recordações! A felicidade é certamente feita de momentos assim e este ficou na memória para recordar. Mas há ainda uma lição final que retiro desta experiência: não há mau tempo que não seja seguido de bom tempo e de que o amanhã é sempre um novo dia.

“O Breithorn é fofinho” e este foi um dia perfeito!