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Cofete: a imensurável vastidão

Cofete é um lugarejo perdido na costa norte da ilha de Fuerteventura. Para lá chegar, é necessário ultrapassar quase 20 km de estrada feita de muita terra batida, com uma aproximação final que põe os cabelos em pé a qualquer condutor inglês (ou alemão, ou holandês, ou americano…) mediano. Depois, há aquela sensação de pecado escondido, omnipresente, ameaçadora: é que, a não ser que o visitante tenha comprado um carro para dar umas voltas, é provável que se desloque em viatura alugada. E nas Canárias não há volta a dar, algures no contracto há-de constar, em letras mais ou menos minúsculas, que o cliente não está autorizado em conduzir o carro fretado para além do asfalto. Se o fizer e se se der mal, o seguro não é válido e antevê-se choruda despesa.

Durante as semanas que antecederam a viagem, deixei-me embalar pelas histórias de horror de turistas que se aventuraram (ou não) até Cofete: que a estrada era virtualmente intransitável, que apenas de 4×4, que só um louco se atreveria a desafiar os termos contractuais. E, perdidos no meio dos testemunhos plenos de cautelas, um ou outro relato mais sóbrio, que afirmava ser a empresa perfeitamente viável. Todo este turbilhão informativo serviu apenas para me angustiar, até porque sempre soube que chegada a hora, nada me manteria afastado da aventura da expedição a Cofete.

Mas afinal, perguntará o leitor, o que diabo tem o local de especial? Más notícias: não dá para explicar por palavras. Só mesmo vendo. É preciso chegar aquele topo, imediatamente antes da descida até ao grupelho de casas, e receber aquela tempestade visual, de xofre. Como explicar uma costa assim, com uma praia a perder de vista, entalada entre o mar revolto do norte de Fuerteventura e uma parede rochosa que se ergue quase numa vertical, com dezenas de metros de altura? Lá em baixo, feita de pontos tão minúsculos que demoram a ser avistados, está Cofete, e depois, mais para diante e um pouco mais afastada do mar, a Villa Winter.

Gustav Winter, cidadão alemão desde há muito ligado a Espanha, chegou a Fuerteventura no início dos anos 30. Oficialmente vinha decidido a cultivar vinha e produzir vinho, e os vestígios deste seu projecto são ainda hoje visiveis nas imediações da sumptuosa casa que ali construiu. Contudo, há fortes indícios de que Winter esteva ligado aos serviços secretos alemães, e que a sua actividade nas ilhas espanholas não se limitou à área agrícola. Segundo as teorias mais realistas, terá operado a partir de sua casa uma pequena base logística para submarinos, e, de acordo com algumas teses  mais ousadas, o local foi posteriormente utilizado como abrigo para figuras de alto nível da Alemanha Nazi na sua  rota de fuga para a América do Sul. Outras histórias falam de U-boats ainda hoje escondidos nos túneis de lava que abundam na ilha, longe de tudo e de todos.

Gustav Winter e o seu inseparável cão representados numa escultura em Cofete
Burros em inusitada “operação stop”: em vez de documentos, uma côdea de pão
Restaurante em Cofete
Uma casa abandonada junto à estrada

A verdade é que a vivenda lá está, semi abandonada, com um caseiro a ocupar uma pequena parte da sua área. Encontra-se encerrada, mas há testemunhos de turistas que deram uma vista de olhos ao interior a troco de alguns Euros. Seja como for, não é dificil olhar o mar ali defronte e deixar fluir a imaginação… de repente, um periscópio ergue-se das águas espumosas… depois, a torre negra de um dos mais temíveis predadores do mar… um submarino… trocam-se sinais de luzes, e ao fim de alguns minutos um bote afasta-se à força de remos do casco do u-boat… Winters na sua habitual gabardine, óculos escuros sempre postos e o fiel cão negro a seu lado caminha com passo decidido até à praia…

Espião ou não, Gustav Winter cativou o coração da população local, oferecendo-lhes trabalho na sua exploração vínicola. Imagino-o como um coronel Kurtz de outros tempos, reinando num Reino que não seria seu por direito, ordenando, gerindo a sua relação com os gentios. Mas hoje de Winter apenas resta a escultura erigida em sua honra junto às casas de Cofete. No lugar, para além do casario modesto, ergue-se um café restaurante onde quase só os turistas vão, mas que espantosamente mantém um charme natural que me força a recomendá-lo. É como se a alma do local fosse tão forte que a presença massiva de estrangeiros não a conseguisse extinguir.

Quanto a aproveitar a deslocação para um banhito na praia, esqueça. As correntes ali são traiçoeiras, e as ondas não são para brincadeiras. No parque de estacionamento junto à areia alguns veículos  testemunham a presença de um bando de audazes, conhecedores dos riscos e das características das águas, mas que mesmo assim aceitam o desafio, maioritariamente sobre uma prancha de surf.

Está a chegar a hora de pedirmos uma segunda dança à Dona Sorte, que naquele dia não nos deixou ficar mal. A subida que nos leva de Cofete até ao ponto panorâmico que dá as boas vindas aos visitantes que se aproximam, é ingreme e a qualquer momento podemos encontrar um carro em sentido inverso, mas a coisa corre bem. Lá em cima, páro. Subo a pé até ao morro mais alto. E é um momento inesquecível.

O caminho de regresso faz-se sem precalços, com um à vontade que nasce da veterania obtida há apenas algumas horas, quando trilhámos aquela estrada rumo ao desconhecido. Se à ida ia  concentrado na superfície de terra batida, buscando incessantemente aquela pedra pontiaguda que arruinaria estas férias, no retorno, já ciente da inexistência de papões naqueles 17 ou 18 km que me separavam do asfalto e da carícia benevolente da civilização, deixei-me embalar pela paisagem. Aqui e acolá erguem-se casas deixadas para trás, abandonadas ao seu destino. Propriedades com histórias para contar, mas que naquele dia permaneceram mudas à minha passagem. Mais adiante um par de burros fazia uma operação “stop” aos turistas que circulavam, pedindo uns pedaços de pão e o que mais houvesse para se trincar. Paguei o tributo e segui.

A linha de costa de Cofete
Um veleiro solitário, que nos fez companhia durante algum tempo
Conduzir até à villa Winter não é para todos
As vinhas que foram de Winter e ao longe a sua casa

Já na fase final do percurso, a paisagem muda. A envolvência agreste, desértica, dá lugar a uma verdura que evoca as costas irlandesas. No mar, um veleiro acompanha-nos, seguindo uma rota paralela. E nisto o som irregular do rodado sobre as pedras soltas e as saliências caprichosas de uma estrada com personalidade própria, cessa. O nosso carro segue agora com uma docilidade já esquecida… é o regresso ao asfalto e o acordar de um sonho que nunca aconteceu. Adeus Cofete.

Para mais informações sobre Gustav Winter e a sua casa misteriosa:
http://en.wikipedia.org/wiki/Villa_Winter
http://www.sunnyfuerteventura.com/villa-winter/index.html

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