“Viajar é olhar” | Sophia de Mello Breyner Andresen
A paixão pela fotografia e o misto de paisagem árida a contrastar num “degradê” de cores que se esbatiam, iam esbatendo, à medida que, descendo sem terminar, por entre caminhos que inflamam a noção a qualquer citadino europeu, pensamos então: vou encontrar um mundo novo, por desbravar e livre das modernidades. E afinal, encontramos caminhos, fartos de levar com o peso do tempo e das rodas cardadas, enrijecidas pelo calor que assim vão cavando ou dando expressão aos trilhos já cheios de sulcos que surgem com os jipes, os mesmos que, fazem o favor de acrescentar rugas à terra, dando expressão de muito vivida aquela terra sem dono, e ali vão dançando, num misto de atitude que contempla, própria de um safari destinado só a ver, sem tocar. Posto isto, não vale a pena grandes intimidades, sem antes sentirmos tudo aquilo como nosso, Etiópia: sorrir, sorrir e sorrir.
Afinal, o que vi nesta viagem, nos entremeios da azáfama que são a troca de lentes, em busca da melhor exposição e do melhor momento que queremos para nós, como se a eternidade ali ficasse, nas nossas mãos, descaracterizada pelo método e momento fotográfico, que guardamos e aguardamos como precioso? Afinal que culpa temos nós de existir egoísmo em todos? Somos egoístas quando queremos estes paraísos, intactos e sem modernidade, nós, confortáveis nas nossas modernas formas de repousar, pagando para ir a esta espécie de nicho, onde as “santas de altar” que são as nativas e os nativos, mais os seus filhos sorridentes, em busca de troca do sorriso por moedas, que a nós não nos custa nada e que ainda assim regateamos.
Desci, juntamente com o jipe carregado de nós, que somos os outros e não pertencemos em nada ali, contudo, somos acolhidos da forma que os de lá têm de receber, mais uma vez, troca de sorrisos por alguns “Birr” e lá vamos, comprando mais umas riquezas artesanais que conseguimos regatear até ao fim. Descemos o vale: jogos tribais, rituais de iniciação, da passagem do ingénuo à idade adulta. Os bois eram magros, alguns esqueléticos, ficando sem saber se por falta de pasto ou culpa da genética da espécie; os bois, alinhados e prontos a serem usados como parte de um ritual de transição, como já tinha dito. Os bois, e elas com os meninos, ostentando para as nossas objectivas os colares de missangas que trocam directamente no mercado; as meninas em locais estratégicos à espera do “Click” e ali, cada “Click” traduz a necessidade de cobrar “birr”; cada “Click” é percebido, como quem diz:… “eu sou a metáfora, que remete para a troca e dá expressão à necessidade que tens de levar uma recordação, e esta sou eu, com o melhor sorriso que tenho, eu, desprovida de quase tudo, abraçando se quiserem o meu filho ou qualquer instrumento que remeta a minha pessoa, à condição que tem, a mesma que todos vós, turistas, procuram captar…”. E ainda dizem que não nos adaptamos…
Vi fazer tanto com tão pouco, fazer negócio do nada. O Homem tem tudo dentro, traz tudo nele, só se esgota na pouca razoabilidade que usa, quando cerca os menores em prol da criação de um mundo, em que existem os informados, manipulando, donos do capital, que se passeiam observando os “outros” que neste caso são os únicos com legitimidade para ali estarem. E são estes, os nativos, biblotes da nossa vontade, que vamos mantendo passando a bailarina para que não se esgotem em processos ancestrais. O jipe desceu aquilo tudo sem travões, os travões dianteiros não funcionavam e a coisa estava a adivinhar-se preta, mas descemos, afinal, havíamos de chegar lá, tal e qual temos chegado a todo o lugar a que nos propomos chegar.
Num pedaço de madeira, esculpido, único que outrora foi um tronco: a córnea, a íris o mergulho dos espectros no meio aquoso, reunindo a sinergia da anatomia do olho, num olhar a permitir à memória ter uma lente de infinitas focagens, que regista muito para lá do automático. Continuo, sentada naquele pedaço de esforço, talhado na incerteza do que irá surgir. Vim procurar imagens e só depois de aqui estar, percebo que não foram imagens que pretendi de facto, quando me propus a este passeio. Foram os momentos que quis, todos num só, só para mim. Os sorrisos, os olhares, prenúncio de alegria e tristeza, as posses já há muito ocidentalizadas, tal e qual a comida chinesa que por aí se vende na Europa e que se assim não for, ninguém lhe toca. Assim somos nós nestes mundos à parte, de que vale a nossa certeza e sabedoria, quando comparadas com a bioquímica que parece tão simples e que não faz questões. A natureza é fantástica. A menina de quem guardo especial carinho, que se deixou fotografar e que tem o brilho próprio de quem nasceu para ser a estrela daquele específico contexto: e que estrela que era, os tecidos, aproveitados de tecidos, usados, trapos de outros trapos que servem agora, transformados numa espécie de burca que protege mas não esconde e que, pelo contrário, dá ênfase à beleza sem maquilhagem que ali, sem saber, ostenta: as vestes caem-lhe pela cabeça e ficam a roçar no ombro, deslizando a cada volta que dá; há também a pele, sem marcas, sem imperfeição, virgem da passagem do tempo cheia de vitalidade, e a cabeça, com o cabelo coberto da lama seca, pende num entrançado quase perfeito. A nossa menina é toda ela um “nu artístico” com pequenos apontamentos que encobrem as partes que não são necessárias mostrar, pois o nu está ali e não é uma obra de encomenda.
Poderia ser esta menina, o mote para uma crítica à sociedade de hoje, aquela de onde fujo sistematicamente, nas férias, e da qual me sinto cada vez mais distanciada? Esta menina pode ser um olhar para o mundo, da moldura que se apronta directa para a parede de minha casa, uma parede também nua, ainda sem marcas nem apontamentos de outras viagens. Quando acordo da sesta, sonho com ela, na parede, pendendo numa moldura que pinga de um prego: a olhar, num gesto parecido com aquele que me fez chamar a atenção dos sentidos, no momento do primeiro “Click”, com a minha estimada máquina fotográfica.
Gostava de ser capaz de contar esta história com tamanha propriedade e jeito a expor o assunto, que não fosse necessário o recurso a imagens, bastava então a literatura e a viagem começava, paralela à nossa. No fim, quando mostrássemos o assunto captado, ele, o leitor, sentiria remorso, por não ter ido, por não ter estado, ou então, a alegria que lhe incutimos sem saber, a mesma que advém do fenómeno que compreende a criação da dúvida no outro, sem a necessidade de a esclarecer. Há coisas na vida que não devem ser esclarecidas na íntegra, sob pena de se perder a essência, a mesma que nos cria as dúvidas.
E nestas coisas, dá jeito:
Não ser nada nem ter títulos; ir “nu” sem estar corrompido pelas preocupações; ir só, sem achar que sabemos e que dominamos o que ali se está a passar, pois ali tudo se passa com a clareza própria das águas não contaminadas que brotam das nascentes mais distantes do Homem, havendo três ou quatro momentos no dia que podem ser: rituais, fenómenos, adorações, e estes: estão planeados, os outros, vão rolando juntamente com a incerteza que é certa, de que a chuva pode acontecer, o sol também e a fome é intermitente, assim o estar e o deixar de estar, definição de morte que nos deixa aflitos e nos apressa a comprar viagens para registar aquilo que achamos pertinente, mas não podemos esquecer: as viagens rápidas são muitas vezes sem conteúdo, depois, há umas assim, como esta que fiz que já se assemelham às viagens ideais, aquelas que devem ser feitas com a mochila nas costas, respeitando cada passo neste mundo imenso.
É que hoje dou por mim a ver tudo tão rápido. Como é possível querer viver à velocidade de um jacto, ou do processador no meu novo “Macintosh”, não da gente? Acabaremos reféns, assim se não o formos já. Os momentos têm uma digestão associada e quando não é respeitada, há risco de acumular erros que vão ficando. É por isso que olhando para trás faltou tanta coisa; é por isso que um relato não deve ser uma “obra de encomenda”, ou seja: não deve servir um público-alvo, devendo sim servir o mundo ou quem o quiser consumir; deve criar muita opinião divergente mas não em torno do mesmo, pois, um relato não se quer nunca o centro das atenções; é então o mote para discutir o que ali foi relatado, não deve ser: obra de encomenda, mas sim uma criação universal, no sentido que serve o mundo e o Universo se este se deleitar a ouvir as certezas que os terráqueos julgam ter.
Ela debruçava-se com o troco flectido para a frente, debruçada sobre as coxas: estava sentada naquela flexão, as feridas expandiam e iam tendo a expressão que eu sabia que de facto elas tinham, chagas autênticas provocadas pelo frenesim do ritual que há pouco mencionei, uma questão de honra, vá lá perceber-se. Eu sequer tento perceber: ela parece calma, com as suas feridas, aparentemente calma e sem grande dificuldade em conseguir os movimentos que se seguem, um ferida humana que não se importa, afinal, fez o que tinha de fazer. É agora a mulher mais observada do ponto de vista da expedição. É dolorosa aquela visão e há escolhas que não cabem em nós. As crianças ali ao lado alheias aos traumas dos adultos, completamente dispostas a serem observadas e a brincar, afinal o que elas querem mesmo é brincar: um sinal de trânsito velho serve de trenó, num sítio onde não há neve; um pau serve de cavalo e a comida é levada à boca com a naturalidade de quem tem fome. Não há etiquetas quando se trata de sobreviver.
Vi por lá um menino com uma arma na mão, julgo que nem força tinha para premir o gatilho; uma “Kalashnikov” presa por arames. Pensei: “e se isto cai ao chão e desata a disparar…”. Mais tarde reparei que não existiam balas na arma. Ali quem guarda as balas é o mais velho, um miúdo também, mas mais velho, o responsável por delegar esta forma de poder. Há quem chame segurança, há quem não comente e talvez porque a imagem de uma criança, segurando um objecto que simboliza a morte, nunca é de boa lembrança. Vi tanta coisa e nem sei como traduzir isto em palavras, pois, o meu pensamento é de tal ordem que não tem nele a relação que as palavras devem ter. Eu penso por impulso e por necessidade, também. E penso de tal forma que conjugo milhares de matérias que fazem um tremendo sentido em mim. Contudo, estas não se apresentam separadas nem por parágrafos, nem por pontuação, e é por isso que me é tão difícil desconstruir esta viagem, pois, o sentido que retirei dela é de tal ordem múltiplo que só consigo ser fiel à descrição que pretendo quando me sento num local onde o silêncio prevalece; eu ali, quem me dera um cenário circular com uma cadeira ao centro, uma cadeira com capacidade de girar, uma cadeira que me permitisse os trezentos e sessenta graus; depois, voltar ao sítio e respirar, inspirar e expirar, voltar ao sítio e tornar a girar pelas fotos, ali expostas em frente, as minhas e as dos meus colegas, eu, as fotos que mais prazer me deram a captar e o silêncio, ali todo por descodificar. Que pensaram aqueles rostos a olhar para mim, eu, ali o centro das atenções dos rostos que ficaram vivos se deus quiser no sítio onde eu os deixei… Etiópia, vou lá voltar, com as minhas emoções.
Na viagem de regresso a janela do avião é curta para libertar da saudade que já sinto; os motores nas asas são presságio a léguas rápidas, para a distância, a distância “daquilo”; dou por mim a pensar em tudo, na certeza de que o homem não nasce todo com as mesmas possibilidades.
:: as fotografias utilizadas no texto são da autoria de Raquel Monteiro ::