É que hoje dou por mim a ver tudo tão rápido. Como é possível querer viver à velocidade de um jacto, ou do processador no meu novo “Macintosh”, não da gente? Acabaremos reféns, assim se não o formos já. Os momentos têm uma digestão associada e quando não é respeitada, há risco de acumular erros que vão ficando. É por isso que olhando para trás faltou tanta coisa; é por isso que um relato não deve ser uma “obra de encomenda”, ou seja: não deve servir um público-alvo, devendo sim servir o mundo ou quem o quiser consumir; deve criar muita opinião divergente mas não em torno do mesmo, pois, um relato não se quer nunca o centro das atenções; é então o mote para discutir o que ali foi relatado, não deve ser: obra de encomenda, mas sim uma criação universal, no sentido que serve o mundo e o Universo se este se deleitar a ouvir as certezas que os terráqueos julgam ter.
Ela debruçava-se com o troco flectido para a frente, debruçada sobre as coxas: estava sentada naquela flexão, as feridas expandiam e iam tendo a expressão que eu sabia que de facto elas tinham, chagas autênticas provocadas pelo frenesim do ritual que há pouco mencionei, uma questão de honra, vá lá perceber-se. Eu sequer tento perceber: ela parece calma, com as suas feridas, aparentemente calma e sem grande dificuldade em conseguir os movimentos que se seguem, um ferida humana que não se importa, afinal, fez o que tinha de fazer. É agora a mulher mais observada do ponto de vista da expedição. É dolorosa aquela visão e há escolhas que não cabem em nós. As crianças ali ao lado alheias aos traumas dos adultos, completamente dispostas a serem observadas e a brincar, afinal o que elas querem mesmo é brincar: um sinal de trânsito velho serve de trenó, num sítio onde não há neve; um pau serve de cavalo e a comida é levada à boca com a naturalidade de quem tem fome. Não há etiquetas quando se trata de sobreviver.
Vi por lá um menino com uma arma na mão, julgo que nem força tinha para premir o gatilho; uma “Kalashnikov” presa por arames. Pensei: “e se isto cai ao chão e desata a disparar…”. Mais tarde reparei que não existiam balas na arma. Ali quem guarda as balas é o mais velho, um miúdo também, mas mais velho, o responsável por delegar esta forma de poder. Há quem chame segurança, há quem não comente e talvez porque a imagem de uma criança, segurando um objecto que simboliza a morte, nunca é de boa lembrança. Vi tanta coisa e nem sei como traduzir isto em palavras, pois, o meu pensamento é de tal ordem que não tem nele a relação que as palavras devem ter. Eu penso por impulso e por necessidade, também. E penso de tal forma que conjugo milhares de matérias que fazem um tremendo sentido em mim. Contudo, estas não se apresentam separadas nem por parágrafos, nem por pontuação, e é por isso que me é tão difícil desconstruir esta viagem, pois, o sentido que retirei dela é de tal ordem múltiplo que só consigo ser fiel à descrição que pretendo quando me sento num local onde o silêncio prevalece; eu ali, quem me dera um cenário circular com uma cadeira ao centro, uma cadeira com capacidade de girar, uma cadeira que me permitisse os trezentos e sessenta graus; depois, voltar ao sítio e respirar, inspirar e expirar, voltar ao sítio e tornar a girar pelas fotos, ali expostas em frente, as minhas e as dos meus colegas, eu, as fotos que mais prazer me deram a captar e o silêncio, ali todo por descodificar. Que pensaram aqueles rostos a olhar para mim, eu, ali o centro das atenções dos rostos que ficaram vivos se deus quiser no sítio onde eu os deixei… Etiópia, vou lá voltar, com as minhas emoções.
Na viagem de regresso a janela do avião é curta para libertar da saudade que já sinto; os motores nas asas são presságio a léguas rápidas, para a distância, a distância “daquilo”; dou por mim a pensar em tudo, na certeza de que o homem não nasce todo com as mesmas possibilidades.
:: as fotografias utilizadas no texto são da autoria de Raquel Monteiro ::
Sem Comentários