X
    Categories: Entrevista

Jorge Vassallo, um verdadeiro alquimista na arte de viajar

Jorge Vassallo, 36 anos, escreve livros e crónicas de viagem, tornou-se viajante profissional e ama incondicionalmente a Índia. Dos já longínquos anos em que foi criativo publicitário não tem grandes saudades, até porque o apelo em partir sempre falou mais alto. Quando há 10 anos deixou o emprego, a casa e o carro, foi “dar uma volta“ para, em boa verdade, nunca mais voltar…

Em 2008, em conjunto com o seu amigo Carlos Carneiro, lança-se no desafio “Até onde vais com 1000 euros?”, projecto que o fez pedalar até Dakar, no Senegal. O blog homónimo recebeu o prémio de melhor “blog do ano” e a vida não voltou a ser a mesma. Por estes dias tanto pode andar na Turquia, Indochina ou até no mítico transiberiano.

Por todos estes motivos o Jorge não é um viajante qualquer: há qualquer coisa de especial nas viagens, estórias e paixão que sente pelas suas deambulações neste nosso mundo. Vamos então conhecê-lo um pouco melhor.

PSe as contabilizássemos, seriam dezenas de viagens traduzidas em centenas de milhares de quilómetros percorridos. Afinal como é que tudo isto começou? Como é que surgiram as viagens na tua vida?

RA vontade de viajar surgiu com um mapa-mundo que havia em casa da minha avó, onde um tio ia marcando com pins os países que já visitara. Além disso, os meus avôs e o meu pai sempre puxaram muito pela imaginação e pelo sentido de aventura – e acho que foi assim que, desde pequeno, comecei a desenvolver este “bichinho do ir”.

PNo fundo, o que significa para ti viajar?

RÉ difícil de explicar. Pode ser tanta coisa ao mesmo tempo. Depende da viagem – e do viajante. Se calhar aquela famosa definição do Santo Agostinho é a melhor forma de descrever o que é viajar: é ler outras páginas do livro que é a vida. Não ficar sempre na mesma página.

PAchas que é preciso aprender para saber viajar?

RHá quem diga que é preciso viajar, para saber aprender. É tudo muito relativo.

PAcreditas que numa viagem há sempre o partir, mas também o voltar?

R Acredito que é saudável voltar.

PParece-te importante voltar à base onde habitualmente desenvolvemos a nossa vida e estabelecemos relações pessoais e emocionais? Faz sentido pensar neste conceito de base ou lugar ao qual pertencemos?

RFaz sentido, porque assim fomos ensinados, porque a maioria das pessoas tem raízes, família – e é essa “paisagem” que faz o tal “lugar ao qual pertencemos”. Mas também respeito quem não tenha essas raízes, porque relações pessoais e emocionais podem estabelecer-se em qualquer lado. Cada percurso de vida é um imenso livro. Desde que não se imponham os nossos modelos aos outros – tanto me faz. No meu caso, acho interessante o facto de ter raízes tão fortes em “casa”, mas ao mesmo tempo, ao longo deste processo de ir e voltar e ir outra vez, saber lançar, manter e fortalecer novas raízes – e assim, a ideia do “lugar ao qual pertenço” já é um bocadinho mais abrangente.

PDepois de estudares Marketing & Publicidade, a passagem profissional pela área não foi muito longa. Há algum arrependimento na volta de 180º que deste à tua vida para te entregares de corpo e alma às viagens?

RTrabalhei três anos em part-time, cinco “a sério” e outros cinco ou seis como freelancer – não foi uma passagem assim tão curta 😉 mas não me arrependo nada das volta que dei. Foi um processo que começou com uma viragem grande mas que nem era para ser definitiva – e depois o caminho foi-se trilhando, até que cheguei ao ponto em que tinha de escolher uma coisa ou outra, e apostei nas viagens. E o que me dá mais gozo é que ainda posso aplicar muito do que aprendi na faculdade e com as agências e pessoas com quem trabalhei ao longo do percurso. Nós somos o somatório de tudo aquilo que já fomos.

Passeio de bibicleta em pondicherry e auroville, Índia.
A apreciar a vista do mosteiro de sumela, perto de Trabzon.

PApós tantos anos de viagens, caminhos, pessoas e experiências, o que é que ainda te consegue surpreender?

RPor onde começar… 😉 eu nem aos quarenta cheguei, mal de mim se já não me conseguisse surpreender com nada.

PUma das ideias que mais passará pela cabeça dos viajantes é dar uma volta ao mundo. Já equacionaste fazê-lo? Porquê?

RJá equacionei, sim. Aliás: quando larguei a agência, o carro e a casa há 10 anos, esse era o meu objectivo. Fui dar uma volta. Foi esse o nome que dei à ideia – e que se podia aplicar a muita coisa, a muitas voltas, interiores e no mapa… mas acabei por não dar a volta completa, digamos que foi só meia-volta ao mundo, acabou-se o dinheiro e tive de voltar. Mas não me arrependo. Talvez um dia faça essa viagem. Estou a planear fazer, em 2013, aquilo que me ficou “atravessado” há uma década. Mas ainda há muito para ver. E o que é uma Volta ao Mundo, afinal? Cada um tem a sua. E o seu.



PAlguma vez foi tua intenção “coleccionar” países? Tens ideia de quantos já visitaste?

RSei em quantos já estive, porque gosto de números; e além disso há uma aplicação no facebook que me faz o favor de ir actualizando as contas. Penso que toda a gente que gosta de viajar, sabe mais ou menos a quantos foi, há sempre algum momento na vida em que faz uma contagem. Mas não é importante para mim “coleccionar” países, nem por sombras. Se assim fosse, não repetia destinos a quantidade de vezes que repito. Gosto muito de voltar aos mesmos lugares, aprofundar experiências e relações, não partir do zero. Sou um curioso por natureza, e isso implica que, quando deixo um país, na minha cabeça fica sempre alguma coisa por fazer, e que deixo “para a próxima”. Contudo, no ano passado lancei um desafio a mim próprio. Como gosto de números, fui dar uma volta aos “meus” e percebi que entrei no meu 50º país quando fiz 35 anos, e que já viajava há 15. Feitas as contas… daí a 15 anos completaria 50 anos – e desafiei-me a conhecer mais 50 países até então. Para manter o ritmo 😉 mas como disse, é um desafio. Não é uma meta. Não vou a lado nenhum só para carimbar o passaporte, só porque sim.

PContinuas a viajar de mochila às costas ou já te rendeste a algumas inovações, nomeadamente na utilização de trolleys e afins?

RMochila.

PIdentificas-te com o conceito backpacker? Achas que pode ser uma forma diferente de viajar?

RO conceito é mais relativo do que se pensa – mas sim, identifico-me com a ideia.

PEm viagem, o que é que não pode faltar na tua bagagem?

RDisponibilidade.

PConsegues isolar o episódio ou situação que positivamente mais marcou as tuas viagens?

RÉ muito difícil isolar um episódio. Há pessoas, encontros, conversas, eventos, surpresas…

PE já houve percalços ou episódios negativos?

RInfelizmente, sim.

PPor opção própria, há muito que deixaste Portugal para te dedicares à tua errância pela Ásia e só voltares pontualmente. O país que em tempos inspirou descobridores, deixou de te atrair e inspirar?

RNem pensar. O “nosso rectângulo” continua a atrair-me, sempre, por todas as razões óbvias – nem que seja porque sou de Sintra. Como poderia não me sentir inspirado por Sintra? E os amigos, a família, toda a paisagem humana (por mais cinzenta que a crise a pinte). Impossível não me sentir atraído pelo “meu cantinho”. Ainda na semana passada estava num restaurante em Luang Prabang, que é a “minha” Sintra da Ásia, quando começo a ouvir Cesária Évora a cantar “Sôdade”… que aperto que me deu!

POlhando ao facto de só voltares a Portugal muito esporadicamente, procuras estar informado sobre o que se passa no país de te viu crescer?

RA internet é uma ferramenta maravilhosa, não é?

PColocando-te exclusivamente na posição de quem olha de fora, como vês da realidade actual do nosso país?

RTemos mesmo de falar sobre isso? É realmente um tema muito triste, frustrante, revoltante – e complicado de discutir numa só resposta a uma só pergunta. De qualquer forma, acredito que de certa forma sou um previlegiado – porque ainda não me senti afectado. E agradeço todos os dias o facto de ter trabalho, de ser pago a tempo, e de não ter âncoras que me prendam financeiramente a nada. Mas é um fantasma sempre presente, a pairar.

À conversa com um monge em Luang Prabang.

PExiste alguma viagem que não fizeste e que nunca irás fazer?

RSim: as viagens dos outros. Sofro de “inveja de viajante” e por muito bem que esteja em algum lado, quando oiço alguém dizer que vai fazer “isto ou aquilo”, fico com uma vontade imensa de também ir. Mas cada pessoa vive as suas viagens à sua maneira – e eu nunca vou fazer as viagens dos outros. Posso ir atrás, posso fazer os mesmos destinos, mas cada viagem é uma viagem. Quanto a destinos – suponho que a pergunta fosse mais orientada nesse sentido – nunca digas nunca.

PE qual não poderás deixar de fazer um dia?

RA próxima. Que, neste caso muito concreto, é a América do Sul.

PQuem já acompanha o teu percurso há algum tempo, sabe da tua paixão pela Índia. O que é que este país tem para ti de tão especial?

RA Índia é um planeta à parte, é um desafio permanente aos cinco sentidos e à percepção que temos de nós mesmos, dos outros, das coisas à nossa volta, das relações entre essas coisas – por isso marca tanta gente que lá vai, e também afasta outros. No meu caso, para além de tudo isto é também o acumular de experiências, peripécias e encontros, são os amigos que fiz ao longo dos anos, as histórias de vida que se cruzaram de tal forma que já é impossível desembaraçar.

PHá por lá alguma coisa que não possa ser encontrada em mais nenhuma parte do mundo?

RHá uma expressão indiana que diz tudo: saab kuch milega. Literalmente quer dizer “tu vais conseguir tudo”, e é normalmente traduzida por “tudo é possível”. O que há na Índia que não pode ser encontrado… eu não conheço o mundo todo, mas esta infinidade de insólitos, este horizonte ao mesmo tempo tão limitado e tão amplo, esta coisa de se viver tempos diferentes ao mesmo tempo… goste-se ou não, é um lugar único.



PSerá que a Índia pode ser considerada a tua segunda casa?

RSim. Porque a primeira é Portugal 😉

PO projecto “Até onde vais com 1000 euros?”, que realizaste com o Carlos Carneiro, teve um enorme impacto na rede digital. Como surgiu e qual o segredo para tal sucesso?

RSurgiu porque ambos decidimos que queríamos realizar algo neste sentido – queríamos realizar um projecto de viagem que fosse feito a sério, com objectivos pessoais muito definidos. E queríamos trabalhar para isso. O segredo do sucesso? Muita preserverança, alguma teimosia e uma estrelinha a dar sorte. E boas energias, claro. Boas energias atraem boas energias.

PNo decorrer da viagem chegaram a acreditar que a conclusão do projecto não era viável?

RAqui entre nós: nunca.

PHá um momento onde alegadamente só já dispunham de dinheiro para voltar a casa. Contudo, a opção foi prosseguir até Dakar e encontrar uma forma de regressar, sem que isso desvirtuasse o objectivo inicial da viagem, ou seja, não gastar mais que os 1000 euros definidos. Como é que foi tomada essa decisão?

RQuando realmente chegámos a esse momento, a decisão estava tomada. As bicicletas e o equipamento tinham feito parte do investimento original de 1000 euros. Ou seja: quando saímos de Lisboa, já só tínhamos 850 euros cada. Decidimos que, por muito que emocionalmente nos custasse, íamos vender as bicicletas. Queríamos trazê-las de volta, mas isso ia sair-nos caro, e ia atrasar-nos. Por isso seguimos até Dakar e vendemo-las pelo valor desse investimento inicial. Quiseram dar-nos mais, mas recusámos. Houve até quem nos oferecesse um voo de regresso para Lisboa – directo! Nem pensar. Fomos fiéis ao nosso projecto e voltámos com os 1000 euros. E só mesmo em Portugal é que ultrapassámos o orçamento, quando não resistimos a um bitoque. Ou seja, devíamos ter alterado o nome da viagem para “Até onde vais com 1000 euros e um bitoque?”

PHá algum episódio ou estória deste projecto que nunca tenha sido divulgada e que queiras partilhar neste momento?

RQue me lembre, está tudo no livro.

POs projectos com o Carlos Carneiro ficaram por aqui ou vês a possibilidade em voltarem à estrada e desenvolverem novos projectos desta natureza?

RClaro que sim, é uma questão de oportunidade e disponibilidade. Somos amigos e temos tantos quilómetros partilhados.

PJá que falamos em projectos de viagem conduzidos por mais do que uma pessoa, vês nesta forma de viajar uma vantagem?

RSim, claro. Mas depende do projecto. Cada caso é um caso.

Com o amigo ramsen, elefante de Luang Prabang.

PUm dos viajantes portugueses mais reconhecidos da actualidade, o Gonçalo Cadilhe, diz qualquer coisa do tipo: “quem viaja em grupo fecha-se dentro do próprio grupo e quem viaja sozinho abre-se ao mundo”. Concordas com esta ideia? Porquê?

RConcordo, em grande parte – mas como tudo, não tem de ser sempre assim. Muitas pessoas viajam sozinhas e estão completamente fechadas dentro delas próprias. O que é mais grave. Mas em grupo, naturalmente que as pessoas tendem a olhar para dentro, a conversar para dentro, a discutir as próprias opiniões, preconceitos, diferenças culturais. Sozinho, a viagem ganha outra dimensão. Mas há viagens e há viagens, claro. Algumas requerem essa partilha com amigos, não temos de ir sempre em introspecção, ou em pesquisa, ou à procura de qualquer coisa.

PAlguns meses após conclusão do projecto surgiu o livro homónimo, ao qual se seguiu a publicação de um guia sobre o “Caminho Português de Santiago”. São livros que surgiram pela força das circunstâncias ou tens manifesto interesse pela literatura de viagem?

REra nosso objectivo publicar um livro sobre o “Até onde vais…”. Tivemos a sorte de receber alguns convites, ainda antes de procurar editora – mas era um objectivo assumido. O livro de Santiago foi um convite da editora, que nos desafiou a realizar o Caminho e a preparar um guia para quem o quisesse fazer. São dois projectos diferentes, cada um interessante à sua maneira – e que surgiram como consequência de um esforço nosso em fazer disto profissão. Se tenho interesse pela literatura de viagem? Claro que sim. De viagem e não só. E espero um dia viver só disso 🙂

PTens outros projectos para publicações futuras?

RSempre. Tantos. Não tenho é tempo para os realizar todos.

PSe uma editora de formulasse um desafio para escreveres sobre o que te apetecesse, desde que relacionado com o mundo das viagens, qual seria o teu tema de eleição?

RE quem disse que não formularam, já? 😉

PActualmente consideras-te aquilo a que se chama um viajante profissional? Consegues sobreviver exclusivamente dos rendimentos obtidos com esta actividade?

RSó vivo dos rendimentos obtidos com esta actividade. Neste momento, não tenho quaisquer outras fontes de rendimento.

PE recomendas que outros se juntem a este grupo restrito de pessoas que conseguiu emancipar-se e fazer do sonho realidade?

RClaro que sim. Nesta área e noutras.



POlhando para o teu percurso, há coisas que hoje terias feito de maneira diferente?

RHá – mas não lamento as minhas opções. Porque são opções, e tive a sorte de as poder tomar. Só posso lamentar o inevitável.

PAcreditas que um dia as viagens vão ter um termo, ou trata-se daquela doença sem cura aparente com que inevitavelmente vais ter de conviver até à viagem final?

RAcredito que o caminho é o destino. Acredito ao ponto de ter isso tatuado no braço.

PUma das tuas imagens de marca passa por fotografares os teus pés em quase todos os lugares por onde passas. Isto tem algum significado especial ou é apenas uma brincadeira?

RÉ uma brincadeira que começou há alguns anos, mas que ganhou mais relevância quando abri o perfil do “fui dar uma volta” no facebook. Adaptei o título de um livro do meu autor preferido (Salman Rushdie) e comecei um álbum de fotos que vou actualizando regularmente. Tem piada – só isso, nem sequer tenho a preocupação de tirar as fotos em todo o lado. E tenho outros álbuns temáticos no facebook, não é só este.

PNeste momento, tens novos projectos na calha? Podes revelar um pouco de algum deles?

RTenho sempre novos projectos na calha. Não tenho é tempo para todos, por isso concentro-me em alguns, adapto outros, adio o que tiver de adiar. Neste momento estou focado nas viagens com os grupos da Nomad e nos conteúdos do blog e do facebook, porque preciso de concentrar a minha comunicação e fortalecer estas plataformas. Antes, tinha tudo muito disperso, agora estou mais focado. Para o ano vou colmatar uma das minhas grandes “falhas” enquanto viajante, que é a América do Sul – e obviamente vou partilhar a aventura. Mas como te disse, ideias e projectos não faltam.

PSe te pedir para sugerires um destino aos leitores da Próxima Viagem, qual é que eleges? Porquê?

RObviamente depende daquilo que pretendem atingir com a viagem. Claro que a Índia é um mundo à parte. Que é um desafio permanente… e também aconselho o Transiberiano, que é uma viagem de alguma reflexão e ao mesmo tempo permite descobrir culturas bem diferentes. Enfim, eu gosto muito da Ásia, por isso é natural que recomende mais os destinos deste continente.

PJá decidiste para onde vais a seguir? Qual vai ser a tua próxima viagem?

RAcabada mais uma edição da Indochina, uma das aventuras que realizo com a Nomad, estou também de regresso Sintra para passar alguns dias com a família e amigos. E, como já te disse, parto depois à descoberta da América do Sul.

Com o guia-professor de Angkor.