X
    Categories: Entrevista

João Leitão, um viajante que gosta de viver o mundo como ele é

João Leitão, nascido em Lisboa há 35 anos, é um dos maiores viajantes portugueses da sua geração. Com residência permanente desde há uns anos em Ouarzazate, Marrocos, o João é daqueles andarilhos que não deixa ninguém indiferente às suas estórias, tal é a forma como vive cada uma das suas viagens.

Licenciado em Artes Visuais pela universidade de Évora, desde muito cedo se tornou inseparável da sua mochila e da vontade em conhecer novas latitudes, povos e culturas.

Apesar de normalmente viajar sozinho, no seu último grande projecto de viagem, o João embarcou com a sua mulher numa Volta ao Mundo, com a duração de 19 meses, que os levaram a dezenas de diferentes latitudes, nomeadamente a uma que é o sonho de muitos viajantes: a Antártida.

Neste momento o número de países visitados já ultrapassa os cem e os passaportes são mais de cinco. Mas mais impressionante que estes números, são as estórias que nos conta, às centenas, no seu reconhecido www.joaoleitao.com.

Uma das grandes qualidades do João Leitão enquanto viajante é a simplicidade, até porque será talvez a única forma de experienciar e viver o mundo como ele realmente é. Vamos então conhecer um pouco melhor este talentoso viajante.

PSe contabilizarmos o teu percurso de viajante, estamos a falar em mais de 100 países visitados, tudo num período de anos relativamente curto. Afinal como é que tudo isto começou? Como é que surgiram as viagens na tua vida?

RComecei a viajar de forma independente em 1999. Não penso que sejam muitos lugares para os mais de 15 anos a viajar intensamente, até porque se olharmos aos períodos em que viajo todos os anos, devo ter uma média anual de uns 6 meses em viagem. Daí ter percorrido metade do mundo. Em qualquer dos casos, há países que acabei por visitar mais em detalhe e outros por onde passei mais rápido. Eu percebo a aparente dificuldade em alguém, que só tem 1 mês de férias por ano, conseguir percorrer um número tão elevado de países. Mas para quem tem a felicidade de poder alongar esse período, as coisas tornam-se um pouco mais fáceis.

Mas nem sempre o tempo e espaço querem dizer muito. No fundo tudo se deve a algo muito singular: saber contemplar e apreciar. E por vezes basta um breve segundo para que o consigamos fazer… Há lugares onde fico um ou dois meses, outros onde fico um fim-de-semana e outros ainda onde fico apenas dois ou três dias.

Penso que a raiz das viagens terá aparecido com os meus pais, e mais tarde com a prática do Kung-fu, pois é uma arte marcial onde fui ensinado a explorar para desenvolver a minha personalidade enquanto individuo. Posteriormente, já na universidade, criei um projecto fotográfico intitulado “People of the World”, para o qual necessitei de viajar frequentemente entre 2001 e 2005. Terá sido aí que o bichinho das viagens ficou gravado para sempre.

PNo fundo, o que significa para ti viajar?

RPara mim viajar é ver coisas novas através de uma achega infantil, no sentido em que procuro ver as coisas com um olhar novo em tudo o que faço – é quase como se fosse a primeira vez e onde tudo se traduz em descoberta. Como gosto muito de cor, sabores, música e idiomas, as viagens são uma forma de “mergulhar” em tudo ao mesmo tempo.

PAchas que para se atingir o estatuto de viajante, se é que isto se pode colocar nestes termos, é preciso aprender a viajar?

RGenericamente eu diria que essa questão de atingir um estatuto qualquer, é uma necessidade muito portuguesa. O português precisa de ser algo, ou ter o estatuto de alguma coisa. Eu pessoalmente nunca me preocupei muito com esse dilema. Em concreto nas viagens, penso que ninguém merece em exclusivo esse falso estatuto, principalmente quando cada pessoa tem a sua própria viagem e à partida todos nós podemos ser viajantes, cada um de uma forma muito própria. Viajar é viver, é inato, não precisamos de aprender nada.

PQue sumário apresentarias da primeira lição se tivesses de ensinar alguém a viajar?

RComo sou uma pessoa muito prática, o sumário da minha primeira lição seria qualquer coisa do tipo: “Visita de estudo a Marraquexe”. Sem dúvida que esta cidade faria de escola para as várias facetas do que significa realmente viajar, a todos os níveis e de uma maneira exacerbada. Seria um curso completo…

PExiste algum viajante moderno, nacional ou internacional, que te inspire no dia-a-dia?

RSim, claro! O Felix Baumgartner e o Henry Worsley, por exemplo.

PQual ou quais os países mais fascinantes que já visitaste? Porquê?

RNeste momento, e já que é uma lista que pode mudar consoante o meu estado de espírito, sinto que gostei particularmente da Guatemala, Uzbequistão, Irão, RDC, Omã, Etiópia, Afeganistão, Marrocos, Peru e Islândia. E para além das viagens propriamente ditas, foi muito marcante para a minha juventude ter vivido pelo menos 6 meses nos Estados Unidos, Turquia, Finlândia, Marrocos e Ucrânia.

João Leitão com um grupo de jovens de Hargeisa, na Somália.

PSe te pedir algum distanciamento emocional, consegues olhar para a tua própria vida como uma viagem permanente? Porquê?

REu acredito que a vida é uma viagem permanente e que todos estamos cá com um bilhete de ida-e-volta. É por isso que tento incentivar as pessoas com os relatos e informação de viagem que publico no meu blog de viagens, pois acredito que é uma forma de aproveitarem melhor o tempo que a vida lhes tem reservado. Porém, apesar de viajar ser importante para mim, pode ser completamente supérfluo para uma outra pessoa e não ser preciso fazê-lo para aproveitar a vida ao máximo, pois ninguém é incompleto só porque não quer ou não pode viajar. E porquê? Porque a grande viagem é feita no interior do nosso próprio ser. Pode haver alguém no jardim da sua aldeia que contempla melhor o amanhecer, o céu, os pássaros e as folhas a balançarem com o vento, do que outros que percorrem meio mundo e nunca se aperceberam destes pequenos detalhes da vida. Viajar não pressupõe criar uma relação melhor com o exterior nem com o nosso interior.



PApós tantos anos de viagens, caminhos, pessoas e experiências, o que é que ainda te consegue surpreender?

RTudo me surpreende. Tenho memória curta. Tudo vem e tudo vai muito rápido.

PDepois de tanta experiência acumulada e vivida, passaste a ver o mundo sob outra perspectiva?

RSem dúvida! Acho que fiquei a ver o mundo através de uma Múltipla Projecção Ortogonal.

PConsegues isolar o episódio ou situação que positivamente mais marcou as tuas viagens?

RTudo em viagem me marcou positivamente, mas talvez destacasse as inúmeras conversas que estabeleci com as pessoas com quem me cruzei ao longo dos muitos anos de estrada. Como sou uma pessoa extremamente comunicativa, entender os países que visitei através da voz de quem lá vive é muito diferente. Prefiro assim e é assim que enriqueço as minhas jornadas na estrada. Noto que desenvolvi muito a minha capacidade de compaixão, paciência e abertura de mentalidade. Descobri também que nós, erradamente, avaliamos demais os outros a partir da nossa própria maneira de ser, e talvez tenhamos de compreender os outros através da sua própria maneira de pensar.

PE negativamente?

RNão é tanto uma questão de episódios negativos, mas sim a atitude a que me vejo obrigado em algumas ocasiões, pois é a única forma de viajar em total aventura em certos destinos do globo. Falo em coisas como desconfiar, mentir, pressionar, ser antipático, chico-esperto, bruto, andar sujo ou ser egoísta. Não são coisas de que me orgulhe particularmente, mas não há volta a dar. As coisas são mesmo assim! Viajar não tem necessariamente de fazer de nós melhores pessoas.

Encontro com a força militar de segurança, no Afeganistão.

PA velocidade com que viajas é absolutamente vertiginosa. Trata-se de uma necessidade ou apenas mais uma etapa de um planeamento há muito estabelecido?

REu tenho dois ritmos de viagem: um rápido e um lento. Há viagens em que sinto necessidade em demorar mais tempo nos lugares e outras que vou seguindo mais rápido. Em qualquer dos casos, não planeio muito e gosto do conceito de viajar rápido, até porque há sempre muita coisa para ver. Sou uma pessoa muito energética e não preciso de ir um mês para me sentar na praia a descansar, pois nunca viajo para ir de “férias”.

Eu sou do tipo de pessoa que quer ver e conhecer muito enquanto puder, pois não sei o que me reserva o futuro. Veja-se o que aconteceu a um conjunto importante de monumentos no Nepal, com o recente terramoto, ou o que se passa diariamente com a guerra na Síria – são dois exemplos de países perdidos. Quando tenho um mês para viajar num país, prefiro habitualmente restringir 2 ou 3 dias a cada sítio, em detrimento de passar uma semana em apenas 3 ou 4 lugares em particular.

Mas há períodos em que me sabe bem descansar e fazer tudo muito lentamente. Quando assim é, posso ficar meses sempre no mesmo país ou no mesmo local. Há vários países onde já permaneci por períodos que vão dos 2 aos 6 meses. Resumindo: são duas formas legítimas de viajar que aproveito consoante as ocasiões. Ninguém viaja melhor ou pior só porque viaja mais rápido ou mais lento. Cada um com a sua.

PE há algum arrependimento no que possas ter feito? Mudarias alguma coisa caso isso fosse possível?

RSim, devia ter ido à Síria. Tentei entrar por duas vezes mas nunca se concretizou. Devia ter insistido. Agora acabou. Quem foi, viu. Quem não foi, agora só vê através de fotos e vídeos.

PExiste uma expressão portuguesa que diz qualquer coisa do tipo: “parece que tem bichos-carpinteiros”. Aplicado às viagens, revês-te nesta ideia? O teu segredo, se é que existe, é estar sempre no encalço de novos projectos de viagem?

RBem, eu nasci prematuro de 8 meses, o que significa que estava pronto para sair e conhecer o mundo. Não sei se isto é uma apenas uma coincidência, mas o certo é que eu sou uma pessoa naturalmente activa e positiva, sem grande paciência para pessoas derrotistas, acanhadas, negativistas, preconceituosas, invejosas e sem projectos. Não aceito desculpas para não sermos o que desejamos ou criarmos e concretizarmos o que queremos. É por isso que gosto de pessoas com um certo brilho nos olhos. Dito isto, sim, sou uma pessoa que se sente bem a criar frequentemente novos projectos, nomeadamente de viagem.

PExiste alguma viagem que não poderás deixar de fazer um dia?

REnquanto puder e a saúde e o dinheiro o permitirem, não haverá nenhuma viagem que não ambicione fazer um dia.

PE qual seguramente nunca farás?

RInfelizmente, acho que nunca irei à Lua. Pelo menos é aquilo que me parece mais improvável neste momento. Mas o melhor é voltares a fazer a mesma pergunta daqui por uns 30 ou 40 anos. Tudo pode acontecer.

Durante a passagem por Chechnya, na Rússia.

PQuantos países já visitaste? Vês no número uma meta, isto é, persegues a ideia de visitares o maior número de países possível, ou deixas que sejam as condições do momento a escolher os teus destinos?

RJá visitei 118 países das Nações Unidas e mais 20 territórios não reconhecidos e regiões autónomas. Se tivesse projectado visitar o maior número de países possível em pouco tempo, nunca teria visitado certos países várias vezes, ou explorado outros durante vários meses, por exemplo. Se quisesse ter “acabado” o mundo já o poderia ter feito – mas viajando de outra maneira.

Relativamente aos destinos, eu não sou nada organizado, por isso, quando organizo aproveito para tentar fazer diferente do habitual. Há muito que aprendi a não me preocupar com a organização ou escolha de novos destinos. Um bom exemplo disto é a minha Volta ao Mundo que, excluindo um ou outro aspecto, não foi planeada – habitualmente só umas semanas antes é que sabíamos com alguma certeza qual seria o próximo destino. Outro exemplo é a recente viagem que fiz à Tunísia ou África Austral, decididas apenas dois dias antes e no momento em que comprava os bilhetes de avião.

Não conto exaustivamente os destinos que visito, mas digo sem vergonha que gostaria de visitar todos os países do mundo, uns quantos territórios não reconhecidos e algumas regiões autónomas interessantes. Sei que há pessoas que criticam esta afirmação – e que dizem que ando a contar carimbos -, mas é normal… Infelizmente, o habitual é haver gente a criticar os sonhos dos outros. Mas qual é afinal o problema em dizer abertamente que gostaria de visitar todos os países do mundo? Faz de mim pior pessoa? Faz de mim pior viajante? O problema seria sentir essa vontade e não a revelar só para satisfazer os caprichos de gente falhada, invejosa e cínica. Em suma, cada um vive como quer e como acredita que devem ser realizados os seus sonhos.



PMudando agora um pouco o sentido da conversa, vamos voltar ao tempo em acabaste os teus estudos em Artes Visuais. Antecipo aqui uma certa ruptura porque foi o momento em que te mudaste de armas e bagagens para Marrocos, país onde continuas a residir. O que te levou a esta mudança?

RPara além de Marrocos ser um país muito exótico, musical e colorido, o seu povo vive com um positivismo constante, característica da qual gosto particularmente. Em qualquer dos casos, diria que a razão desta mudança remonta ao anos em que estudei na universidade, período onde também trabalhei como tour leader a fazer quatro ou cinco viagens anuais desde Évora até ao Deserto do Saara. Como oportunidade puxa oportunidade, acabei por ficar.

PE o que é que Marrocos tem de tão especial para ter sido eleito como a tua nova morada?

RTodo o país é muito exótico e o seu povo muito acolhedor e simpático. Penso também que o que me afastou de Portugal foi o facto de os portugueses, de maneira geral, serem muito derrotistas e andarem sempre a queixarem-se de tudo e de todos. Se está calor queixam-se que está calor, se está frio queixam-se que está frio. O marroquino, contrariamente ao português, sorri mais e satisfaz-se com o que tem. É uma boa lição de vida – aprender a estar satisfeito quando se tem e quando não se tem. Um marroquino pobre sorri e um marroquino rico sorri. Um português pobre queixa-se; um português rico queixa-se. Não entendo!

PHá alguma coisa que só possa ser encontrada em Marrocos e não em qualquer outra parte do mundo?

RApesar de cada país ter as suas preciosidades e segredos, Marrocos tem uma diversidade cultural e de paisagens inacreditável. A minha vinda para o país foi a consequência de uma série de decisões e adoro cá estar. Gosto das cores, da arquitectura, da abundância de vegetais e frutas, da simpatia e positivismo do povo, da luz, dos idiomas… Enfim, há por aqui uma espécie de ambiente mágico e isso é bom.

PJá alguma vez pensaste no que seria a tua vida, caso tivesses enveredado por outro caminho quando acabaste os estudos em Artes Visuais? Falo, por exemplo, de te teres mantido em Portugal e teres acabado numa qualquer empresa nacional. Como seria hoje esse João Leitão?

RSempre soube o que quis da vida, pelo que acabar numa qualquer empresa nacional nunca esteve nos meus planos. Não acabei onde estou por ordem do acaso, mas antes por decisão própria. Sempre planeei ter a minha própria liberdade laboral, até porque nunca me rendi à luta por algo que não fosse a minha independência. Se o João Leitão tivesse ficado em Portugal, hoje não seria uma pessoa muito diferente.

PNão sentes saudades de Portugal? Nunca pensaste voltar definitivamente?

RSou muito bom a aceitar onde estou. Saudade é uma palavra estranha para mim, já que me adapto facilmente aos locais por onde passo. Como não acredito que tudo seja definitivo na vida, Marrocos provavelmente também não será para sempre. Eu gosto muito de Portugal e aproveito ao máximo quando lá estou, mas será este o local para onde voltarei? Como não consigo antever a vida de uma forma tão simplista, pode ser que sim. Quem sabe!?

PÉs um homem dado a crenças? Qual é o peso que a meditação tem na tua vida e como é que isso te ajuda nas viagens?

RNão sou muito dado a crenças ou religiões, mas confesso que algumas vezes dou por mim a praticar algum tipo superstição ou ritual.

PQuem segue o teu percurso, sabe que és um homem de projectos e causas. Quais são as tuas verdadeiras causas?

RNa sequência de ter interiorizado demasiado as minhas causas, acho que neste momento estou até um pouco à deriva. Vejo frequentemente que aquilo em que acreditava, que demorou o seu tempo a construir, se tornou tão natural que neste momento é inato. E isto pode ser perigoso, já que posso perder as raízes do que me fez aquilo que sou. Dito isto, reconheço que ando num processo de entender, uma vez mais, o que me levou a ser a pessoa que hoje estás a entrevistar.

Encontro com uma tribo de índios na Amazónia brasileira, durante a volta ao mundo.

PJá alguma vez desenvolveste algum tipo de voluntariado em viagem? Achas isso importante no desenvolvimento de um indivíduo enquanto viajante?

RFiz várias acções de voluntariado com crianças em Portugal, mas sem ter que ver directamente com as viagens. No estrangeiro estive no Cazaquistão, onde desenvolvi duas acções de voluntariado com crianças: uma onde dei aulas de artes plásticas e outra onde ensinei inglês, numa espécie de campo de férias em Almaty, no sul do país. Não acho que este tipo de acções sejam importantes para o meu desenvolvimento enquanto viajante, mas enquanto pessoa, disso não tenho dúvidas. Dar é muito bom, tal como receber…

PNo que toca aos projectos onde estás envolvido, são conhecidos os vários sites sobre viagens, o Dar Rita – riad em estilo marroquino que funciona como hotel na cidade de Ouarzazate – ou as muitas expedições que organizas a Marrocos. Há algum destes projectos que te mereça mais carinho?

RQuer o hotel Dar Rita, quer a organização dos tours com o Marrocos.com, não podiam vencer sem a participação da minha irmã, a Rita. São projectos desafiantes e muito motivadores, mas onde precisamos um do outro para termos sucesso. É por isso que não tenho dúvidas quanto ao que me merece mais carinho: é o facto de poder estar metido nisto com a minha irmã.

PMas tens necessidade em desenvolver permanentemente novos projectos?

RTenho muitos projectos em mente e dezenas de coisas que gostaria de concretizar. Mas estou vigorosamente a tentar habituar-me à ideia de que “menos é mais” – “less is more”.

PE estes projectos têm que ver apenas com o sector das viagens ou há áreas completamente diferentes?

ROs projectos em que penso são em todas as áreas possíveis e imaginárias. Lembra-te que estudei Artes Visuais? Imaginação é o que não falta!



PActualmente consideras-te aquilo a que se chama um viajante profissional? Consegues sobreviver exclusivamente dos rendimentos obtidos com esta actividade?

RNão me considero profissional em nada. Sou muito amador em tudo o que faço e assim quero continuar. É a forma que tenho para manter uma certa ingenuidade e liberdade de pensamento naquilo que concretizo. Não quero ser viajante profissional, rendido a viajar para ganhar dinheiro. É como um artista a pintar só para vender. Não penso desta maneira. E sim, consigo viver só com os rendimentos obtidos em resultado das actividades relacionadas com as viagens.

PO que faz uma viagem ser diferente? As paisagens de um destino, a cultura, as pessoas ou a gastronomia?

RPenso que está tudo interligado. Uma paisagem pode direccionar a cultura de um povo, no sentido em que pode determinar a essência das próprias pessoas e aquilo que comem no seu dia-a-dia. Pode parecer uma ideia algo confusa, mas é extremamente simples. Vamos a um exemplo: um habitante do Deserto do Saara vê seguramente a sua cultura, comida e maneira de viver, muito determinadas por aquilo que o rodeia. A sua indumentária é adaptada ao lugar onde vive; aquilo que come é adaptado ao lugar onde vive; e a sua maneira de estar é adaptada ao lugar onde vive.

PPegando na questão da gastronomia, vês na experiência do saber comer também ela uma viagem?

RSim, obviamente! Percebemos muito de uma cultura através da sua gastronomia.

PQual foi o prato mais esquisito e difícil de comer que já encontraste?

RLeite de égua azedo no Cazaquistão. Não é bem o meu sabor.

PMas se isso fosse importante para a experiência de viagem, voltarias a fazê-lo?

RNão sei. Quando isso acontecer logo saberei se sim ou não.

PExiste algum objecto que te acompanhe em todas as viagens e do qual sejas inseparável?

RCorta unhas. Chinelos de praia. Máquina fotográfica.

Viagem numa van para Timbuktu, no Mali.

PÉs exigente com a planificação das tuas viagens, no sentido em que precisas de definir o itinerário e marcar tudo com muita antecedência, ou preferes ser surpreendido pelo inesperado e ter que improvisar?

RNão planeio nada com antecedência. A viagem aparece e concretiza-se à medida que vou viajando. Gosto de ir improvisando a rota através dos estímulos ou das dicas de outras pessoas que vou conhecendo na viagem.

PSem entrar em campos demasiadamente subjectivos, o que é pesa na escolha dos teus novos destinos?

RComo gostava de visitar todos os países e territórios do mundo, qualquer coisa que venha à “rede é peixe”. O que costumo fazer é ir procurar voos e acabo por seleccionar os meus destinos dois ou três dias antes de embarcar. É mais fácil!

PE preferes conhecer sempre novos países ou gostas de voltar, com alguma frequência, a alguns pelos quais tens mais afinidade?

ROlhando ao meu historial de viagens já fui mais vezes a países repetidos do que a países novos. Tenho países onde já fui muitíssimas vezes – Mauritânia 7 vezes, Turquia 8 vezes, Polónia 10 vezes, Roménia 5 vezes, Peru 3 vezes, etc… Mas ando a tentar viajar para países que ainda nunca visitei. É uma tarefa difícil!

PAcreditas que essa vontade de errância permanente vai manter-se até ao resto dos teus dias, ou acreditas que há um tempo para tudo e que chegará o momento em que vais parar de viajar?

RNão sei. Está tudo em aberto. Daqui a uns anos talvez possa responder melhor a esta pergunta.

PAinda há muita gente que acredita que viajar é um prazer muito caro e que se destina só a ricos. Queres desmistificar um pouco esta ideia?

REnquanto estive na universidade sempre fui criticado por viajar, pois diziam que era rico. Eu nunca fui rico, nunca tive uma vida de grandes luxos e ainda hoje em dia compro roupa em segunda-mão no mercado. Sempre gastei tudo o que ganho a viajar. Cheguei a ter quatro empregos em simultâneo e quando convidava alguém para trabalhar a servir às mesas num restaurante, durante os fins-de-semana, nunca encontrei ninguém que quisesse acompanhar-me. Acordar cedo ao Sábado ou Domingo, para trabalhar 15 horas por dia, parece que não é apelativo para muita gente. Aparentemente a minha riqueza talvez estivesse afinal no meu trabalho e os críticos talvez gostassem mais de ficar na cama.

Com excepção de algumas viagens para lugares inóspitos do planeta, não há destinos caros. Há é destinos para gente que se mexe e ganha o seu dinheiro, e outros destinos – o sofá – para quem prefere ficar em casa. Em qualquer dos casos, há gente com muito dinheiro que não viaja e quem, apesar dos seus parcos recursos, consegue desenvolver projectos de viagem absolutamente fascinantes. A título de exemplo posso dizer que já viajei durante um mês por Marrocos, Mauritânia e Senegal, quase sempre à boleia, onde não cheguei a gastar 300 Euros, incluindo transportes – de autocarro para a ida e no avião das lagostas, enfiado no meio das caixas do peixe, para o regresso.

Em suma, tudo são escolhas… Se não estamos satisfeitos com a vida, há que lutar por aquilo que se quer. Queremos mais? Então há que mexer, procurar, encontrar e concretizar. Nós somos aquilo a que damos prioridade. Tenho um amigo polaco que após lhe ter perguntado porque trabalhava 16 horas por dia, respondeu-me: “porque quero ter o dobro”. Pessoalmente, eu hoje em dia, quando estou em casa, trabalho 16 a 17 horas diárias. Porquê? Porque quero o dobro. Não há desculpas!

João Leitão com um pastor no Deserto do Saara, em Marrocos.

PQual é o orçamento médio para um mês nas tuas viagens?

RDepende dos destinos. Nada é igual. Um mês no Chile não custa o mesmo que um mês na Venezuela. Mas devo dizer que sou um viajante low-cost, que uma ou outra vez faz uma extravagância.

PRegressaste há uns meses de uma volta ao mundo com a duração de 19 meses. Esta experiência, que terá sido a viagem com maior duração que concluíste, mudou alguma coisa na forma como te relacionas com o mundo?

RNão, porque o que havia para mudar foi alcançado com outras viagens, muito antes desta volta ao mundo.

PE na forma de viajar?

RTambém não.

PQueres contar alguma experiência com que não estivesses minimamente à espera e que te tenha surpreendido por completo?

RNunca esperei que Machu Picchu fosse um destino “mass-tourism”. É claro que sabia antecipadamente que existem quotas diárias de visitantes, mas presenciar um tão grande número de autocarros repletos de gente, que depois se precipitavam euforicamente complexo adentro, fez desmoronar muita da mística que tinha na minha cabeça. Em qualquer dos casos o local é bonito. Gostei principalmente em subir à montanha Machu Picchu para ver as ruínas bem do alto.



PUma das surpresas para muitos dos que te acompanhavam na Volta ao Mundo foi a visita à Antárctida, um dos destinos que preenche o imaginário de muitos viajantes. O que é que te levou a embarcar nesta aventura?

RNão quis esperar pelos 60 anos, idade média dos restantes participantes da expedição para ir. Foi a viagem mais cara que alguma vez fiz, mas valeu bem a pena. Aliás, é uma das viagens que quero fazer outra vez num futuro próximo.

PE foi um objectivo difícil de concretizar?

RFoi super fácil, mas devo dizer que a escolha foi muito ponderada, pois gastei dinheiro suficiente para viajar durante 1 ano. A expedição de cruzeiro, que demorou 2 semanas, arrancou de Ushuaia, cidade do sul da Argentina onde fiquei até encontrar uma expedição que me despertasse atenção. Acabei por escolher a mais cara, não só porque me pareceu a melhor, mas também porque incluía mais actividades e pontos de interesse – cruzar os 66 graus abaixo do Circulo Polar Antárctico era para mim um dos pontos obrigatórios.

PConsegues eleger o pior e o melhor destes 19 meses de viagem?

RTalvez possa haver momentos altos e baixos, mas eu não os consigo eleger. De uma forma geral foi tudo bom nesta viagem.

PE do que nunca te esquecerás nas viagens que já fizeste?

RAtravessar a América do Sul com o carro que comprei no Equador foi fantástico; fazer o tour de Chernobyl e Pripyat foi brutal; a expedição de cruzeiro até ao Circulo Polar Antárctico foi inesquecível; e a viagem de barco através do Rio Amazonas durante vários meses, que me levou do Brasil ao Equador, passando pelo Peru, foi única. Relembro ainda a visita da Coreia do Norte, que também foi muito interessante, bem como os imperdíveis pátios de comida na China.

PNos últimos anos tem-se assistido ao lançamento de livros por parte de alguns dos viajantes portugueses mais conhecidos. Nunca pensaste no assunto?

RNão só pensei no assunto, como já tive alguns livros à venda: um de fotografia sobre Marraquexe, que esteve vários anos disponível e vendeu muitos exemplares por estar ligado a um projecto turístico que mantive sobre a cidade – o projecto acabou porque foi vendido em 2012 a um inglês; um caderno de receitas vegetarianas, que também vendeu um número muito interessante de exemplares; e o “A partir da Luz”, um livro totalmente dedicado às viagens. Actualmente disponho deste último em versão eBook, numa edição corrigida e melhorada, mas durante 2016 ou 2017 estou a prever fazer uma reedição em papel, com novas fotografias e versões em português e inglês.

PE há algum novo título na calha?

RHá um que já está a caminho. Vai ser o meu segundo caderno de receitas vegetarianas.

PHá alguma experiência que não possas deixar de recomendar a um viajante, mesmo que esteja ainda a iniciar-se nesta arte de andarilhar?

RParticipar no Central Asia Rally. Para quem está ainda no início do percurso de viajante é, sem sombra de dúvidas, uma experiência marcante e que deixará calo logo à primeira.

Passagem da fronteira hondurenha.

PEnquanto viajante, há algum segredo que nunca tenhas revelado e que o possas fazer neste momento?

RPosso revelar um caso insólito, ocorrido durante uma viagem que fiz com o meu amigo João Paulo Peixoto, enquanto atravessávamos de carro a República do Daguestão, já noite dentro e meio perdidos. A certo momento, enquanto fazia cocó no meio do deserto, vi um OVNI. E mais não digo…

PE quanto a novos projectos há alguma coisa calha? Podes revelar um pouco de algum deles?

RComecei de novo a fazer de tour leader com viagens low cost a Marrocos. Tenho já quatro datas marcadas e quase tudo esgotado para o início de 2016.

PSe te pedir para sugerires um destino aos leitores do Ao Sabor do Vento, qual é que eleges? Porquê?

RO Ksar de Ait Benhaddou, em Ouarzazate, Marrocos. Por se encontrar entre montanhas, deserto e oásis, é um lindo exemplo da construção em adobe no sul de Marrocos. As vistas são fenomenais e o facto de conseguirmos explorar a aldeia sem grandes limitações, é uma experiência absolutamente fantástica. Para além disto o local é também Património Mundial da Humanidade, segundo a UNESCO.

PJá decidiste para onde vais a seguir? Qual vai ser a tua próxima viagem?

REste ano, posteriormente a Março, ainda não sei os meus destinos. Está tudo em aberto. Até lá ficarei entre Marrocos, Polónia, sul do Iraque, Mónaco e França.

View Comments