Perder o passaporte era a menor das minhas preocupações.
Mas perder o meu caderno de viagens, era uma catástrofe.
Bruce Chatwin, escritor de viagens inglês, 1940-1989).
Depois da publicação onde dei conta da minha chegada ao centro de Nova Iorque, julgo que todos aguardariam pelas primeiras palavras sobre o raiar do dia seguinte, mas tal terá de ficar para depois. Antes de avançar com uma narrativa mais descritiva sobre a minha primeira visita à cidade que nunca dorme, há que voltar um pouco atrás para relatar um episódio caricato e, porventura, até anedótico: a visita à esquadra de polícia do Newark Liberty International Airport.
“You have a similar name…”
Foi ao som destas palavras, dengosamente pronunciadas por um roliço polícia latino-americano, no controlo Alfandegário no aeroporto de Newark, que verdadeiramente iniciei a minha experiência de viagem nos EUA. Mas já lá vamos. Eram aproximadamente 16h00 quando, já depois de recolhidas as bagagens, nos deparamos com uma espécie de Yankee Halloween (uma festa de meninos traquinas) tal era o aparato policial montado. A confusão era grande e os efectivos (Polícia, FBI e Homeland Security) espalhavam-se por tudo o que era canto. Inicialmente foi com alguma surpresa que presenciámos aquela situação, mas rapidamente nos lembrámos em que dia nos encontrávamos: 10 de Setembro, véspera das comemorações do fatídico 11 de Setembro de 2001. E é mesmo como diz o velho ditado: “Depois de casa roubada, trancas na porta.”. Enfim, tínhamos chegado aos states em dia de vigilância reforçada e tolerância zero.
Tudo começou quando um moçoilo afro-americano se aproximou e atirou de chofre: “follow me, please”. Surpresos, mas calmos, lá o seguimos vagarosamente por entre uma enorme fila que serpenteava até ao Controlo de Passaportes e do ESTA . Apesar da sua cara de poucos amigos, pelo caminho lá foi perguntando pelo visto obtido previamente, o documento de residência preenchido e se o passaporte estava em dia, ao que respondemos com um leve sorriso e um determinado “yes, of course sir”. Pouco depois estávamos frente a um envidraçado à prova de bala, onde era feito o dito controlo dos passaportes e talvez a última barreira antes de entrarmos nos EUA. Primeiro a entrar: a Andreia. Dados biométricos certinhos e papelada toda em dia. Lá explicou ao senhor polícia o vinha fazer em terras do Tio Sam, passo em frente e já está. Seguiu-se a Ana Maria, exactamente através do mesmo procedimento, mas talvez com uma cara mais séria. Tudo a funcionar bem pela segunda vez e também já se encontrava dentro dos States. Por fim restava eu, mas aí a coisa já não foi lá com um simples sorriso. O agente observou com muita atenção o meu passaporte, dirigiu-me uma série de perguntas, quer em inglês, quer em espanhol, para acabar com um ar sério a dizer:
“Sir, you have to follow me to another superior officer. And you know why? You have a similar name with another guy. || Senhor, você tem que me seguir para falar com um oficial superior. E você sabe por quê? Você tem um nome parecido com outra pessoa.”
“Sorry sir, but what do you mean with «You have a similar name with another guy?» || Desculpe Senhor, mas o que é que quer dizer com «Você tem um nome parecido com outra pessoa» – Respondi eu já a não achar piada nenhuma à situação.”
Posto isto, já devem ter adivinhado a situação: a polícia encontrou no sistema informático outra pessoa com o mesmo nome que o meu. E em caso de dúvida, já estava mesmo a ver a solução: pildra com o José Alberto. Confesso que não é uma situação agradável e onde a incerteza passa a ter um papel importante, mas como não podia fazer muito mais, lá acompanhei o senhor polícia até à esquadra do aeroporto, sempre a baloiçar entre a esperança e o desespero. Claro que a Ana Maria e a Andrea já estavam na galhofa com a situação.
“Mãe, parece que vamos ficar livres do pai. Ele vai de “férias” para Guantánamo, em Cuba, e nós ficamos em Nova Iorque. Yeah! Yes!” – Dizia a Andreia sorrindo.
Entrados na esquadra, a primeira coisa que me veio à cabeça, e vá-se lá saber-se porquê, foi a Hill Street Blues (A Balada de Hill Street na tradução portuguesa), uma série televisiva policial da NBC, com grande sucesso nos anos 80. A primeira coisa que vi foram aqueles balcões típicos das esquadras de polícia norte americanas, com grandes globos brancos de luz a dizer POLICE, de onde cada polícia nos olha de alto para baixo. É uma situação estranha e ao mesmo tempo familiar, no sentido em que o tempo parece não ter por ali passado, tal é o ambiente e semelhança com a série policial que a seu momento guiou uma verdadeira legião de fãs em Portugal.
Apesar de haver por ali várias pessoas, optei por me sentar numa cadeira, por sinal bem fria, sem ninguém dos lados. Olhei em redor e vi um casal de chineses que aguardava instruções, quem sabe para ir embora; uma senhora mexicana (assim o julgo pelo acento do seu castelhano) com um bebé ao colo, que com meia dúzia de palavrões latinos procurava extinguir o seu choro; um alemão muito embriagado (ou pior) a escorregar pela cadeira abaixo; umas crianças, que claramente aparentavam ser menores, a olharem atentamente para uns documentos que um dos polícias lhes havia colocado nas mãos, aos quais reagiram chorando; e, talvez o mais peculiar daquele ambiente, um grande número de polícias, enfiados em imaculadas fardas azul navy que, em ritmos hipnóticos e cadenciados, andam para trás e para a frente procurando não se sabe muito bem o quê. Por instantes imaginei, bem lá no fundo, um gabinete longe de tudo e de todos, onde o Capitão Frank Furillo (Daniel J. Travanti) beija apaixonadamente a futura mulher, a defensora pública Joyce Davenport (Verónica Hamel); ou o sargento Lucy Battes (Betty Thomas), por detrás do balcão, berrando instruções para Joe Coffey (Ed Marinaro) sobre as duas prostitutas que recentemente lhe fugiram da mão. Mas ei quando de repente sou arrancado desta espécie de regressão temporal por um alto e seco:
“Siuba dus Xantoss (Silva dos Santos)”
Expectante, levanto-me rapidamente da minha cadeira de pau, imaginando ainda um Mick Belker (Bruce Weitz), vestido de detetive disfarçado, com gorro enfiado pela cabeça, palito na boca e pronto para me dar uma mordidela, mas não…
“It´s me.” – Digo eu para uma jovem polícia que me estende o passaporte.
“Sure!” – Diz ela, sorrindo e com um tom meio trocista.
Sorrio de volta, ela volta a sorrir e entrega-me o passaporte. Quero fazer-me rapidamente à vida, pois não tenho grande interesse que a vida se faça a mim, mas não sem antes anotar alguns pormenores no meu diário de viagem. Por instantes dou comigo a pensar na vida e saio de mansinho, parecendo ainda ouvir o Sargento Phil Esterhaus (Michael Conrad) dizer-me a sua famosa frase:
“Let´s be careful out there! || Vamos a ter cuidado lá fora!”
Na minha vida tento sempre encontrar um princípio, um meio e um fim para qualquer boa história. Li algures, já não sei bem onde, que pensar na nossa vida faz o nosso cérebro desencadear os mecanismos necessários à produção de Cortisol (hormona que ajuda a reduzir o stress) e Ocitocina (hormona que, para além de outros benefícios, ajuda a desenvolver o apego e empatia entre pessoas). Isto dá-nos a capacidade única de nos ligarmos a algo ou alguém, mesmo que desconhecidos, através de um processo sem explicação aparente, mas que resulta muitas vezes numa enorme afeição. Quero com isto dizer que as histórias são aquilo que usamos para dar sentido às nossas vidas. Imaginem, por breves por momentos, que vivíamos sem a capacidade para compreender que a nossa história é efémera e terá um dia de acabar; que as nossas vidas eram infinitas como o Universo. O que seria então a nossa história? Ainda amaríamos? Teríamos prazeres resultantes da nossa vivência diária? Seria que estes pequenos e fugazes momentos, que significam tudo, teriam ainda a importância que lhes atribuímos?
As palavras que escrevo podem parecer à primeira vista simples rabiscos, pensamentos errantes ou o que quer que se lhes queira atribuir. Em qualquer dos casos, se prestarem melhor atenção, hão-de reparar que elas fazem referência a dias, locais, pessoas, cheiros, sabores, reflexões ou, melhor que tudo isto, às minhas próprias memórias; as mesmas memórias que julgo serem a única bagagem de mão que nos acompanhará no derradeiro check-in da nossa vida. É por isso que nunca me canso de dizer: “O Mundo mudou-me.”
Sem duvida o melhor episódio relatado com todos os pormenores vividos. Parece que estamos lá outra vez. Na realidade foi ao mesmo tempo divertido e também estranho por assim dizer. É a primeira vez que sucedia algo do género. Mas foi de longe um dos melhores e mais caricatos episódios que já vivemos em viagem. E ainda por cima, logo à chegada. Belo cartão de visita. Aguardo ansiosamente a continuação... aqui... no Próxima Viagem.