O sol põe-se sobre Yangon. As nuvens tempestuosas que inundam os céus tingem-se de amarelo. Cidade ou floresta? Da janela do avião avistam-se traços de civilização no meio das centenas de árvores que cobrem a paisagem. Será mesmo uma civilização ou apenas uma miragem? O que será que me espera neste mundo desconhecido, nesta volta à Ásia, que tanto me tinha marcado e tão pouco recordo.
Passaram 15 anos e volto a pisar solo asiático. O calor e a humidade já não me chocam tanto, mas fazem-se sentir intensamente. O céu perdeu a cor dourada de há pouco, mas estes tons acompanham a minha entrada no hall principal do aeroporto. São os tons do budismo tibetano que tão bem sabem aquecer a alma.
O stress do visto, será que está tudo bem? Afinal de contas ainda é uma ditadura a governar – a mais antiga ditadura militar do mundo. Serei bem recebido, ainda para mais de máquina fotográfica às costas? Que caras insensíveis. Se fossem robots não fariam melhor. Digitalização facial, carimbos e já está. Agradeço e sorrio. Estou dentro, fui aceite, é o primeiro grande alívio destes dias.
Espera-nos um jovem birmanês muito sorridente, com a sua camisa branca, longyi a cobrir as pernas e chinelos de enfiar no dedo. Afinal é o traje típico masculino da Birmânia, e eram raros os que não optavam por tal indumentária. Um papel com o apelido do João estava seguro entre as suas mãos. Vénias para aqui, vénias para ali, e algumas poucas palavras trocadas em inglês servem de primeiro contacto. Com duas mochilas às costas, que nos dificultam o movimento, e de passo desajeitado, acompanhamos o tal rapaz a um táxi. O combinado era termos transporte até ao hotel – guesthouse talvez seja o termo correcto -, mas não contávamos que nos enfiasse num táxi sózinhos. Disse-nos para não nos preocuparmos com o pagamento. Assim o fizemos.
Nunca tinha andado num carro neste estado: estofos com as molas quase à vista; manípulos dos vidros caídos no banco, que só precisamos de encaixar na respectiva saliência, para que as janelas possam abrir e deixar passar o ar; ou portas onde os plásticos já tiveram os seus dias, pois deixaram de habitar o lugar e deram vida ao metal. O táxi iniciou a seu percurso e o cheiro a gasolina, acompanhado pelos solavancos nas estradas ou caminhos de terra, marcaram o início da viagem.
Chegámos a Yangon. Percebe-se pelas luzes e alguns néons que ainda funcionam. Lojas fechadas e poucas pessoas nos passeios. Os buracos ou valas na estrada continuam, semáforos nem vê-los. Algumas inundações e um ou outro cheiro a esgoto, não fossem estes a céu aberto. Parece que o caminho é feito em câmara lenta. São imagens fixas, pouco detalhadas, luzes apagadas, portas fechadas, prédios baixos. Uma luz aqui e outra ali marcam algum estabelecimento comercial. As letras arredondadas são imensamente bonitas. Que povo fantástico poderá ter criado tanta arte na escrita? O choque cultural é imenso. Onde estou? Que faço aqui? Porque não fui para o mundo moderno? Porque escolhi este destino? Será belo de tão deprimente que parece? Um dia de viagem, um simples dia. Como é possível em apenas um dia mudar tanto de vida? Estou no mesmo planeta? Estou vivo ainda? Será que o resto das pessoas sabe deste tesouro? Será que percebem que o custo da viagem de avião é ínfimo com o retorno recebido por aqui estar? Continuo fascinado com esta capacidade de estar tão tão tão longe da minha vida, mas tão perto dela ao mesmo tempo. Sim, é isto, é isto que realmente é viver. Podia nem chegar ao centro de Yangon e voltar para Lisboa, porque já tinha valido a pena. O impacto estava cá. Começo a aperceber-me que as viagens também funcionam como o amor: é à primeira vista. O resto vai-se descobrindo, pois nem tudo é perfeito, mas o primeiro impacto dá o mote para o resto. Depois é cimentar a relação. A descoberta inicial é acompanhada de carinho, confiança, respeito. A diferença que me ocorre é que aqui se pode amar mais que um destino, mais que um local, mais que uma paisagem, mais que um povo. Mesmo quando estamos longe, estamos perto e as saudades apertam. Vão restando as memórias do tempo que passámos juntos e o sonho do próximo reencontro.
Mas ainda agora cheguei e já estamos perdidos! Paramos junto a uma estrada alagada. Um cheiro nauseabundo. Pedem-se indicações, em birmanês, claro está. Seguimos viagem. Parámos pouco depois. Chegámos. Mother Land Inn 2, nome bonito e empolgante que no entanto me soa a algo soviético. Terceiro e último piso, contas feitas, pago em dollars, notas lisas, para não perderem valor. E que tal uma volta ao quarteirão para começar a respirar este local?
Começo a sorrir com as enormes possibilidades fotográficas. Pareço uma criança que chega de noite a um novo parque temático e começa a imaginar as brincadeiras dos próximos dias. Tudo estranhamente calmo, e escuro, muito escuro. Mas nem por isso me sinto menos seguro, pelo contrário. Um senhor já de alguma idade tropeça e cai. Apresso-me a ajudar a levantá-lo. Sinto-me bem por poder ajudar. Tropeçou numa vala de esgoto, à qual faltava um dos blocos de cimento que a cobrem. Perdeu o chinelo. Com a mão procurou e lá o encontrou. Já em pé sorriu, agradeceu, e num inglês arranhado, pergunta-me de onde sou. Lá explico o melhor que consigo.
Foi um bom passeio, embora já estivesse totalmente perdido. Maldito sentido de orientação! Uma Star Cola para refrescar e uns minutos a enxotar melgas e mosquitos na esplanada. E eis que chega a Rita e o Owen. O cansaço da viagem foi enorme, mas não é motivo para que não se troquem uns dedos de conversa com amigos! Tão longe e tão perto de casa.
Grandes fotos e um texto que nos transporta para lá. Parabéns!
Muito obrigado Jorge!
Boa estreia, Ruben 🙂
Muito obrigado Filipe =)
Abc.
Esse João que está no seu artigo parece ser uma pessoal sensata e iluminada 😛 😛
Tá um texto bem fixe, já tou com saudades!!
Posso comprovar que sim, uma espécie em vias de extinção =p