De quem são hoje estes domínios? Dos Himbas, dos Hereros, dos velhos kaisers e nazis disfarçados de paisanos biológicos, dos oligarcas de Joanesburgo, terra de serpentes e de lacraus, “terra de ninguém” porfia Klaus, o juiz de Nuremberga. Estamos nas terras sagradas do povo San, um dos legatários da herança namibiana, o povo guerreiro das planícies de Spitzkoppe, de quem nunca chegaremos a ver um homem, excepto uns traços rupestres de caçadores de alforges e setas maiores do que o corpo gravados há vinte mil anos em grutas altaneiras, outrora abrigos de faunas corpulentas e copiosas tempestades.
Aquela é uma bela noite africana como não as há noutro lugar, e a noite da Namíbia tem a vastidão do mar. Noite estelar como as do nosso Sul, noite do grande capote de céu onde milhões de guizos se acendem e apagam, mil milhões de boquinhas que abrem e fecham e falam de amor, altivo feudo de contempladores do silêncio e da voz oculta, noite perfumada de sarças ardentes e de toros queimados, e também de um arroz pantagruélico que o chef Sean cozinha com esmero gourmet no tacho de campanha. Entreolhamo-nos então vagamente, deitados à etrusca em redor do lume, distraídos com o esplendor da paisagem, o hálito das postas de atum e goraz da mariscada de Sean, e sem que ninguém abra a boca para comentar o peixe, o sentimento ou o infinito, fitamo-nos, talvez unidos por um único pensamento: a alegria de estar vivo e de termos um cozinheiro de calibre na comitiva.
Naquela hora distante de qualquer amostra de mundo em sobressalto, somos um grupo de vinte caravanistas vítimas da imponência da latitude sul em toda a sua imensa e luxuriosa medida, de horizontes que desabam no infinito, e de um juiz de Nuremberga com perguntas difíceis que prossegue os seus solilóquios flamejantes: “Isto é terra de pretos dominada por brancos, como foi cinco séculos, como temo que seja por muito tempo, enquanto existirem as palavras turismo, petróleo, diamantes e ganância”. Do outro lado da fogueira, de voz embargada pela zurrapa, ouve-se a contra-senha. “É terra de vales brancos, de céus polvilhados de estrelas brancas, e dinheiros branqueados”, sugere o expedito Matt, futuro causídico havaiano, o homem-menino que anda vagabundo no mundo em ano sabático.