Como é do conhecimento público, o vale de Kathmandu, no Nepal, foi no dia 25 de Abril assolado por um violento sismo com magnitude 7,8 (escala de Richter). Os estragos são elevadíssimos e o número de vítimas não para, infelizmente, de aumentar. A publicação deste texto, que está agendada desde a semana passada, esteve cancelada nos últimos dias por motivos que nos parecem evidentes. Depois de reflectirmos sobre o assunto, decidimos avançar com a sua publicação, não só em memória de todas as vítimas, mas também como forma de perpetuar, se é que isso é possível, a Stupa de Boudhanat, agora bastante danificada.
Estava há alguns dias em Kathmandu, no Nepal. Depois de quase todos os meus sentidos terem sido “atropelados” por uma cidade caótica, confusa mas muito interessante pela diversidade cultural; encontrei um local que foi uma lufada de ar fresco. Resolvi ficar por uns momentos.
Sentei-me na stupa ao final do dia. Uma ligeira brisa no ar, o sol a ocultar-se e a dar uma cor muito especial ao dourado do pináculo e aos olhos de Budha lá pintados. Fechei os olhos e parei para ouvir. Desta vez não ouvi gritos, buzinas ou música em altos berros como tem sido apanágio nesta cidade. Desta vez ouvi pássaros a esvoaçar, uma reza através dos altifalantes com tambores e um som metálico não identificável. Ao fundo vozes de pessoas mas não muito nítidas… umas conversam outras rezam, mas sempre com a mesma frase a ser murmurada “Om mani padme hum”… um murmurinho constante.
Também ouço o som metálico do sino. Um pequeno sino já desgastado de tanto tocar. Um sino que toca cada vez que a roda de oração gigante (dungkhor), dum dos pequenos templos que se encontram em redor da stupa, dá a volta completa. E posso dizer-vos que são milhares de vezes ao dia. Tantas pessoas e tantas orações desgastam aquele sino de tal forma que existe já um buraco onde o ferro bate.
Abro os olhos como que acordando dum sono profundo… as pessoas andam todas pela esquerda, no sentido dos ponteiros do relógio. Sempre. Não se vê ninguém, nem mesmo turistas que ousem quebrar as regras e andem ao contrário. Sempre à volta desta stupa gigante, centro religioso do Budismo Tibetano em Kathmandu no Nepal.
Pessoas de todas as idades, umas com rosários, outras com rodas de oração, todas circulam, umas mais depressa que outras mas todas sempre a murmurar. Ao meu lado várias pessoas também sentadas, talvez a observar como eu, talvez a absorver como eu. Duas miúdas locais sorriem para mim. São bonitas as Nepalesas.
Continua a descer o sol e os raios já não me tocam a face. As pessoas continuam a andar e a rezar. São cada vez mais. Cada vez também mais monges com as suas vestes vermelhas e alaranjadas.
Vejo um segurança a aproximar-se que, com o seu cassetete em punho, apita para um casal de namorados que mesmo estando a portar-se de acordo com as regras da decência se encontram muito perto um do outro. Manda-os separar. Afinal de contas estamos num local de oração. Já o casal ao meu lado continua encostado e de mão dada. Talvez por serem estrangeiros não levam a repreensão.
No piso de baixo, mesmo à minha frente, num dos quatro níveis da stupa, estavam três tábuas grandes no chão. Em duas delas, um homem e uma mulher rezavam. Em pé, depois ajoelhando-se e por fim deitando-se, tudo parte do movimento de oração que repetem dezenas se não centenas de vezes por dia.
Neste momento no ar não se sente apenas o cheiro a incenso, manteiga de yake e outras coisas que por aqui se queimam. Agora começasse a cheirar a comida e a caril. O sol começa a desaparecer e as pessoas continuam a circular à volta da stupa e a murmurar.
É assim em Boudhanat, onde fica esta fantástica stupa, este local de oração e culto mais famoso do Budismo Tibetano em Kathmandu. Um local, que tal como a cidade, é completamente um desafio aos sentidos! Um local, em que tal como a cidade, há uma novidade a cada minuto, a cada curva, a cada pessoa que nos aparece pela frente. Um local que nos deixa uma enorme vontade de voltar vezes sem conta. Um local que é um verdadeiro oásis no meio duma cidade caótica mas fantástica como Kathmandu.
Nota: Stupas são uma espécie de templos onde os Budistas se deslocam para rezar, habitualmente logo pela manhã ou ao final do dia. Antes do violento sismo do passado dia 25 de Abril, esta stupa de Bodhnath era de longe a mais importante no Nepal.