Dizer que a Islândia é um local desolado não é novidade: as vastas paisagens vulcânicas negras, montanhas de gelo com água acumulada de vários séculos e quintas muito espaçadas, apresentam-se dispersas através dos vales que fazem parte da mitologia de viagens de muita gente (eu incluído). Mas nos Westfjords, a “mão deformada” situada no noroeste da ilha, e que a muito custo se mantém presa ao resto do território, é diferente. Diferente porque, em certa medida, está-se mais longe de Reykjavík que qualquer outro local habitado da ilha, isto apesar de a distância quilométrica não ser a maior de todas. É que o progresso, que é como quem diz a Estrada 1 (rodovia circular que liga as principais zonas habitadas da ilha), passa longe deste canto sinuoso e quase esquecido: em menos de cem anos a escassa população desta região encolheu para metade e o cenário de velhas quintas abandonadas, à espera de cair, é normal ao longo das estradas e em maior número que no resto da Islândia (o interior da ilha nunca foi colonizado).
Para quem por lá vive a vida não é fácil, sobretudo se considerarmos que vive isolado durante a maior parte do Inverno e a ver as poucas quintas que ainda resistem a morrer uma por uma. Acredito que será por este isolamento que alguns dos que vão ficando se agarram a projectos que aparentemente são maiores que eles próprios, e que claramente parecem corpos estranhos nestas baías quase sempre cobertas de neblina. Um bom exemplo é um singular museu de aviação instalado numa quinta, que surge do nada na estrada de terra batida, a caminho de Látrabjarg, e onde está, por exemplo, um velho Antonov da Aeroflot em perfeito estado. Outro desses bons exemplos é Samúel Jónsson.
Samúel Jónsson vivia isolado em Selárdalur (a fazer lembrar Bjartur, o teimoso protagonista de Gente Independente, a obra maior de Halldor Laxness), uma pequena quinta junto à praia num braço de mar na zona oeste dos Westjords. Jónsson era um apaixonado por arte, mas essa paixão não era compatível com a rotina dura de uma quinta islandesa. Foi por isso que durante quase toda a sua vida a arte não foi prioridade, até que ao chegar à meia-idade decidiu pôr de lado a vida do campo e dedicar-se em pleno à sua veia artística.
Não tendo qualquer formação formal em arte, e já com uma idade avançada, começou a trabalhar da maneira que sabia, trazendo sacos de cimento que misturava com areia de praia junto à sua quinta. Começou por temas bem próximos: as focas que abundam nos Westfjords ou as figuras da mitologia tornaram-se em estátuas toscas dispostas pela quinta. Mas isto foi só o princípio. Samúel Jónsson tinha um enorme fascínio por Alhambra, em Espanha, e a uma dada altura aventurou-se na reprodução da famosa Fonte dos Leões que instalou no museu, também construído por ele e para albergar desenhos e outras obras menos resistentes aos elementos. É por lá que hoje podemos ver as fotos da obra original que serviram de inspiração à reprodução. Construiu ainda um altar que tentou oferecer à comunidade local, mas a oferta foi recusada pois o que estava na capela existente cumpria perfeitamente o seu objectivo. Esta recusa acabou por ser o mote de um novo projecto: Samúel Jónsson decidiu construir a sua própria capela onde pudesse albergar o altar que tinha acabado construir.
Após a sua morte, em 1969, este património certamente iria desaparecer, e a verdade é que ficou ao abandono durante décadas, não fosse a intervenção recente do governo islandês e vários privados para recuperar e preservar o peculiar espólio, já numa avançada fase de degradação: da casa onde Samúel viveu apenas resta uma das paredes, havendo agora um plano para a sua reconstrução. Esta atenção recente para Selárdalur é uma das razões porque este local é familiar para os fãs da banda Sigur Rós: foi um dos locais escolhidos na digressão de 2006, onde a banda aparece em alguns dos lugares mais improváveis da ilha, e que tão brilhantemente foi retratado do documentário Heima (e que continuo a achar ser o melhor postal ilustrado da Islândia que alguma vez foi feito).
Como chegar?
Para chegar aqui não são precisas muitas indicações. Na Islândia nunca há muitos cruzamentos onde alguém se possa enganar. Basta seguir até Bíldudalur, seja vindo de sul a partir de Patreksfjörður, o caminho provável de quem chega vindo do ferry que sai de Snæfellsnes, ou vindo de norte pela estrada de terra batida que liga a Ísafjörður, a capital da região.
Esta sonolenta aldeia piscatória será a última ligação à civilização, o que significa dizer que é o local ideal para encher o depósito e beber um café à ida ou mesmo uma refeição quente no regresso; o tempo estimado para este desvio serão 3 a 4 horas e o pequeno supermercado / restaurante, mesmo em frente à bomba de gasolina, é um excelente local para desenjoar da junk food muito comum pelo país. A partir daqui basta seguir a estrada que atravessa a aldeia até ao fim, seguindo depois por um caminho de terra batida que serve de acesso a uma quinta. Depois é seguir sempre em frente, durante cerca de 40 quilómetros até chegar perto da ponta do fiorde, o local onde fica a quinta abandonada de Samúel Jónsson. Chegando lá haverá uma pequena caixa para receber donativos para a recuperação e os edifícios do museu e da capela, mas provavelmente estarão fechados. Para visitar o seu interior o mais aconselhado é contactar uma agência de viagens local que ajude a agendar a visita.
Mesmo não sendo apreciador deste estilo artístico, o caminho para lá chegar certamente vai valer a pena!