Assustados e sem dinheiro para dar, uma vez que estávamos de calções e todos os nossos haveres tinham sido deixados no complexo turístico, tentámos apenas acalmar a situação.
A “negociação” decorreu durante breves minutos, que pareceram uma eternidade, tendo sido resolvida com apenas quatro cigarros. O homem agarrou os cigarros, e num choro desesperado correu pela areia até se perder no mangal.
O resto do dia foi passado no complexo turístico entre banhos e algumas cervejas, para nos restabelecermos do recente sobressalto.
As crianças continuavam a expor o vasto leque de colares, pulseiras e artesanato. Outros vinham com alguidares na cabeça vendendo castanha de caju por medida. O contacto com estas gentes foi extremamente enriquecedor, porque apesar de serem crianças foram obrigadas a crescer demasiado rápido, passando ao lado da infância.
O nosso “guia” aparece com a sua camisola do Inter de Milão, entre rasgos e listas, com um sorriso nos lábios e os olhos tão brilhantes como órbitas.
“Como te podemos pagar Nonda?”.
“Uma garrafa de água estava bom”, respondeu Nonda exibindo os seus dentes brancos como a areia.
A água potável é um bem essencial e raro em Angola, uma simples garrafa de água tem um valor inquantificável. Um litro de água é mais caro que um litro de gasolina.
Comprei cinco garrafas de litro e meio, e distribuí pelo Nonda e amigos. Breves segundos depois, vindos sei lá de onde, uma multidão de crianças se deliciava com tão preciosa fonte de vida. Tínhamos acabado de conquistar amigos para toda a vida.
Outro miúdo com uma bola de trapo, desafiou-nos para um jogo de futebol, mas o dia já ia longo, tínhamos de regressar.
Foi feita a promessa que na próxima semana estaríamos novamente no Mussulo, levaríamos a bola para o desafio de futebol, quem ganhasse o jogo ficaria com ela.
A semana passou rápida até ao fim-de-semana seguinte.
No cais de embarque os mesmos de sempre, com promessas de melhores preços em menor tempo de travessia. Apeteceu-me perguntar quantas vezes tinham virado o barco no trajecto, mas optei por esperar calmamente pelo Hakuna Matata.
A travessia foi tranquila e rápida. Nas mãos levava uma bola acabadinha de comprar, que girava sobre o dedo enquanto observava a aproximação dos coqueirais cada vez mais perto.
À medida que nos aproximávamos dos cais, um cacho de meninos acenava felizes por nos ver. Os seus olhos quase brilharam que nem estrelas quando viram a bola. Lancei-a para o meio deles. Eram seguramente trinta crianças que corriam atrás dela a cada pontapé que davam, percorrendo uma vasta extensão de areia.
Enquanto pousávamos as toalhas e mochilas, Nonda dirigiu-se até nós dizendo que estava tudo pronto. O campo ficava num areal mais interior da praia, tinham sido construídas balizas de madeira, com dois paus de cada lado. O círculo do meio campo também estava desenhado no chão, bem como a pinta do penalty.
A dificuldade foi formarem a equipa, uma vez que eram 29 miúdos, enquanto nós apenas 4.
Todos queriam jogar, e estavam demasiado excitados para ficarem de fora num jogo tão importante. Antes de se gerar qualquer desentendimento, concordámos que jogassem todos contra nós.
Durante o encontro, mais do que o prazer de jogar, regozijei-me com a felicidade que as crianças desfrutavam do jogo, que parecia a sério e com uma bola profissional.
Golo aqui, golo ali, apesar de termos corrido muito não conseguimos evitar uma pesada derrota, para deslumbre de todas as crianças que festejavam tão efusivamente, que pareciam ter ganho a taça de África.
Sentado no meio do campo, uma criança com quatro ou cinco anos estava num pranto. Aproximei-me dele para saber se estava magoado.
Levanta o queixo, e com os olhos lavados em lágrimas, proferiu “ganhámos, ganhámos”.
“Pois ganharam, parabéns”, consegui soltar, com os olhos marejados também.
Quando chegou o fim do dia, enquanto esperávamos no cais, muitas das crianças que tinham jogado à bola connosco, faziam-nos companhia perguntando quando voltávamos.
Entretanto chega o Hakuna Matata, embarcámos e seguimos para a outra margem, enquanto o sol alaranjado já se escondia por detrás do mar.
Na praia as silhuetas negras corriam atrás da bola pelo areal sem fim, quem sabe até ao nascer do dia.
Dois lados de um mesmo lugar…
Que sorte eles têm de poder usufruir daquele paraíso todos os dias.
E, ao mesmo tempo, nós, não damos valor à àgua que para nós é algo que temos como garantido, e uma simples bola de futebol, algo tão banal…
Para eles, pequenos seres,que vivem no paraíso, são pequenos tesouros…
Incrível, como quando estamos atentos ao que nos rodeia é tão simples podermos fazer alguém feliz. Damos um pouco de nós e conseguimos receber tanto em troca…
A magia está na simplicidade de um gesto.