Tudo está feito para o drama, até a atracção do abismo, quando o “bus” ameaça resvalar sobre o imenso vale. Então, o vento fica suspenso nos ciprestes e a chusma de turistas encavalitados desata num coro de gritinhos, que os deuses incas os socorram, e não bula nem mais uma palhinha para o “bus” não tombar da escarpa fatal. Imploro eu também secretamente por socorro, para me libertarem do sovaco de um mexicano de Aguas Calientes, amigo de Chavez e do presunto. Newton e a tracção dianteira do “bus” salvam-me do suado embaraço e após uma guinada providencial do motorista, o mexicano cola-se ao vidro como um mata-moscas e lá fica, beiçudo e atolado, os seiscentos metros em falta antes do cume.
Dois mil e 500 metros acima da quota do Pacífico e meio século depois de Che, eis-me diante da cidadela de Machu Picchu, a “montanha velha” ou o antigo mundo inca. A cidade sagrada, uma utopia escondida do mundo “civilizado” durante mil anos. Espantosamente, à luz da moderna ideia de progresso, os incas não tinham cultura escrita e eram o esplendor da Civilização do Novo Mundo. Não tinham livros, documentos, crónicas (Garcilaso foi uma espécie de Pêro Vaz de Caminha) ou teatro ao ar livre como os gregos. O mais próximo disto eram os anfiteatros de relva em socalcos onde adoravam os deuses. Mas essa carência de registos não os impediu de criar um império, um dos mais enigmáticos na história do Homem.
Assim vamos, a trote e tragédia cómica, pela chicana da montanha vindos de peregrinação desde a cidade de Cusco onde El Che, ainda o rapazola Ernesto, fora detido por um verão glacial e a quarta avaria na La Poderosa ao terceiro mês de viagem. Nos dias de Cusco, o franzino e asmático Ernesto, então um jovem médico recém-licenciado e em rota de educação sentimental com o seu futuro companheiro de armas Alberto, procurou a arquitectura inca e a memória do genocídio espanhol descritas nos comentários reais de Garcilaso Inca de La Veja para depois tirocinar sobre os eternos desmandos do mundo. Subiu a pé à cidade sagrada vestido de agasalhos de alpaca, bebido de chá-mate e mascado de uns quantos alqueires de folhas de coca, enquanto as juntas da Poderosa levavam restauro. Os registos disponíveis são suposições de teóricos da História, da Arqueologia ou do Esoterismo. A sabedoria vinha do aparente improviso, por exemplo, aproveitavam-se os recursos hídricos sulcando canais e terraplanando socalcos e terraços. Trabalhavam somente à força de braços e dos possantes lamas e alpacas, os animais andinos cujas pernas esguias e abauladas enganam da sua pujança elefantina. Não se jogava nenhum jogo, ao contrário dos aztecas inventores do futebol ou dos mancebos escoceses, pioneiros do golfe jogado nas praias e arribas com bordões e pedras de gutta percha.
Belo texto, Tiago. Eu continuo a achar Machu Picchu um dos locais mais fascinantes que já tive oportunidade conhecer. Abraço e boas escritas!