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Marraquexe: dança encantada

Ondulante e segura, rolava ao som da música indiferente ao ambiente que a rodeava, num movimento de plena sensualidade, cativante aos meus olhos fixos nas suas curvas.

Circunspecto, imobilizei-me durante breves minutos que me pareceram horas, como se fosse um ser estático sob o efeito do hipnotismo. A música invadiu-me subtilmente o cérebro, criando uma onda electrizante em todo o sistema nervoso, que me deixou sem de reacção, e completamente rendido.

Os meus olhos permaneceram fixos nos seus movimentos graciosos e sedutores, bamboleando vagarosamente para a esquerda e para a direita, ao som de uma melodia envolvente, criando um ambiente de encantamento.

De súbdito parou, deixou de bambolear e permaneceu inerte, como se tivesse perdido o encanto ou a arte de seduzir, olhou o músico nos olhos e deitou a língua de fora, recolhendo-se na cesta de vime, enrolada sobre si própria.

Escassos segundos depois, escapei da minha letargia, e tudo pareceu ganhar vida à minha volta, regressando ao reboliço anterior.

A Praça Jemaa-el-Fna pulsa apressadamente, como o coração de um desportista após uma maratona. A vida é vivida com tal intensidade, que cada segundo conta.

Epicentro da cidade antiga e Património da Humanidade, a praça é hoje uma referência do que Marraquexe já foi em tempos idos. Tendas fumegantes saciam a fome de quem passa, com inúmeros manjares e sumos de laranja espremidas à nossa frente.

Acrobatas saltam bem alto, tocando com os calcanhares no rabo, para gáudio dos espectadores atentos. Músicos encantadores de serpentes fazem-nas subir na direcção do céu azul, enfeitiçadas pela música.

Alguns videntes tentam ler a sina de quem passa. Uma senhora de cara tapada com um lenço, agarrou-me a mão tentando prever-me o futuro. Tentei libertar-me apesar da insistência dela, em correr com os olhos as linhas da minha mão aberta, profetizando um diagnóstico sobre o meu futuro.

“Obrigado minha senhora, mas prefiro descobri-lo por mim próprio”.

Rostos descobertos contrastam com outros tapados, cobrindo quem sabe, traços de lindas mulheres. Peles curtidas pelo sol apresentam os seus melhores sorrisos, na esperança de conseguir vender algo, nem que seja o serviço de guia turístico. Mulheres de lenços coloridos cobrindo-lhes a cabeça evitam olhares, fixando tristemente os olhos no chão empoeirado.

A praça é um local de contrastes, sorrisos desdentados tentam cativar-nos a cada minuto, rostos envelhecidos oferecem-nos semblantes serenos, enquanto as faces sujas das crianças que deambulam descalças olham-nos suplicantes, enquanto entendem as mãos pequenas esperançadas em receber umas moedinhas, ou apenas um simples lápis ou caneta.

Um senhor de turbante, já para lá dos setenta ofereceu-me os seus serviços de guia. Agradeci a disponibilidade, mas preferi conhecer a cidade por mim próprio, evitando mapas e horários, deixando-me levar para onde os olhos decidissem.

Saio da praça que continuava fervilhante, para me imiscuir por entre a multidão de gentes e animais. Pessoas num vaivém constante puxando carrinhos de mão, cruzam-se com motorizadas e bicicletas que pedalam apressadas, por entre burros cansados que arrastam carroças pesadas, num turbilhão de cores e sensações.

O coração bate apressado no centro de Marraquexe.

Embrenho-me pelos souks, e pelas suas ruelas labirínticas e misteriosas.

Mulheres vestidas de Djellabas, de cara coberta com um lenço vendem pão à entrada do souk. Uma delas agarrou numa carcaça e correu atrás de quem passava incentivando a compra.

Uma das muitas ruas do labiríntico souk junto à Praça Jemaa-el-Fna.
© Agostinho Mendes

Os souks estão organizados segundo o tipo de produtos comercializados, dispondo-se ao longo de ruas estreitas. Desde souks de artigos de metal, a cestaria e madeira, ao dos tintureiros, dos cintos e chinelos, o das peles, joalharia, tapetes, vestuário e até o da Velha Praça onde os mágicos e curandeiros compram os seus produtos, e as pessoas do campo vendem as suas frutas e legumes.

Comprei um “djellaba”, uma túnica típica marroquina feita de linho, para quem sabe usar em alguma ocasião especial, ou mesmo um dia servir de guia Marroquino. Nunca se sabe o dia de amanhã.

Durante a compra do mesmo o regateio foi viril e intenso. Os Marroquinos adoram pechinchar e vêem tal como uma característica cultural. Cada um do seu lado da corda, puxávamos até levar o adversário à exaustão, perscrutando depois o seu rosto e tentando desvendar as suas fragilidades para poder explorá-las.

O “djellaba” começou com um preço exorbitante, que foi descendo ao longo da conversa. A cada puxão que dava do meu lado, de quando em vez sentia um puxão mais forte do outro lado da corda, que me fazia perder terreno em relação ao meu opositor.

Puxão daqui, puxão dali, acabámos por estabelecer um preço justo, que foi menos de metade do pedido inicial. Para festejar a conclusão da renhida negociação, fui presenteado com um sorriso amarelado e um chá de menta.

Saí para a Praça Jemaa-el-Fna, já o dia se despedia e as primeiras luzes começavam a dar sinais de vida, transmitindo à cidade uma alma própria, que nos envolve como um abraço apertado.

Dei comigo a olhar as centenas de luzes tremeluzentes, que concediam à praça uma auréola mágica, e deixei-me levar pela noite que foi caindo aos poucos, até escurecer por completo.

O dia seguinte amanheceu, e com ele o regresso da agitação de outros dias, desde há mais de mil anos a esta parte que é sempre assim.

O sol ainda estava baixo, emprestando às ruas uns tons rosados, ou não fosse Marraquexe apelidada de “Cidade Vermelha”, talvez devido à cor da terra, que dispensou um pouco da sua tonalidade às ruas e casas que nela se semeiam.

A magnífica luz emanada pelo sol tem outro encanto ao amanhecer, a cidade como se fosse uma criança veste-se em tons de rosa, tenuemente pincelada por uma aguarela.

Dirigi-me para a Mesquita Koutoubia, construída em 1162 para ser uma das maiores mesquitas do mundo muçulmano Ocidental, possuindo um dos mais antigos e bem conservados minaretes.

A sua magnífica torre de pedra de Gueliz cor-de-rosa, ergue-se sobre a cidade no alto dos seus setenta metros. O sol tímido, e ainda a despertar, incide sobre ela os seus raios insípidos, realçando-lhe a sua beleza rosada, visível a muitos quilómetros de distância.

Marraquexe desde o início da sua fundação, foi defendida por robustas muralhas e fortalezas. Foram construídas muralhas de pisé de dezanove quilómetros de comprimento, nove metros de altura e dois metros de espessura, limitando os bairros Gueliz e Hivernage no seu lado oriental, as muralhas rodeiam a cidade velha, com os seus palácios e jardins.

Do lado de fora, a visão é arrebatadora. Acima das muralhas as palmeiras dançam ao sabor do vento, tendo como pano de fundo os picos cobertos de neve, das montanhas do Alto Atlas.

Deixei-me ficar ali breves instantes, até que o vento cortante me empurrou novamente para o interior das muralhas.

Entrei pelo lado oriental, pela porta Bab Aghmat datada do século XII, desaguando no bairro dos curtidores.

Por entre Mesquitas e palácios, deparei-me com o Palácio Bahia cujo nome significa “Palácio do Favorito” construído no final do século XIX. A sua arquitectura é exuberante, com luxuosas salas abertas para pátios arborizados. Dá para entender a razão do nome.

Absorvi-me novamente por entre a multidão do mellah de Marraquexe, perdendo-me por ruas estreitas, encontrando -me em cada praça. Passei por portas abertas que não sabia onde iriam dar, para me deparar com mais gente, perdida a cada esquina, negociando, falando alegremente ou simplesmente olhando-me com desconfiança.

Com alguma dificuldade abri caminho por entre uma teia de gente, burros e carros de carga, sem saber para onde estava a passar, apenas para atravessar para a outra margem.

Contagiado por esta agitação pululante, senti-me num formigueiro, onde parece que toda a gente anda à deriva sem saber muito bem para onde ir, mas na verdade todos têm um objectivo a cumprir, dentro de uma desorganização organizada.

O sol já dava sinais de querer dormir, lentamente ia cerrando os olhos e aninhando-se lá ao fundo no horizonte.

Nas pequenas muralhas de pisé, construídas apenas para separar uma casa ou um jardim de olhares indiscretos, projectavam-se as silhuetas de quem passava, desdobrando-se nas suas paredes num teatro de sombras.

As cores, essas também eram agora diferentes, como se o retoque de uma aguarela fosse dado numa última pincelada. A intensidade da luz ao anoitecer cobria as paredes de uma tonalidade idêntica à ferrugem.

A noite caiu, e a cidade voltou a iluminar-se com o mesmo encanto e a mesma magia de outros dias. Sentei-me para jantar, e deixei-me levar pela música que entrou em mim, sem pedir permissão, apenas me invadiu sem que pudesse fazer nada para evitar.

Parque Lalla Hasna junto à mesquita Koutoubia.
© Agostinho Mendes
Tenda de venda de caracóis na Praça Jemaa-el-Fna.
© Agostinho Mendes

À minha frente, a mesma dança serena e sensual, bamboleante para a esquerda e para a direita, com movimentos ritmados e envolventes. Senti-me a hipnotizar perante tamanho fascínio, não queria arredar o olhar, apenas fixar-me naquele ponto, e seguir com os olhos o contorcer das suas curvas.

Olhei-a nos olhos, mas ela não parou, manteve o movimento do corpo suave e subtil até me arrastar à sonolência.

A música finalmente parou, e o seu umbigo nu ficou estático, quebrando o elo mágico que o ligava ao meu olhar.

O encantamento como que de súbito parou, a bailarina da dança do ventre abandonou a pista, e abandonou-me entregue aos meus pensamentos.