A noite fria demorava a passar. Enrolado em dois cobertores velhos, e coberto por algumas caixas de cartão desdobradas, sentia o ar gélido trespassar-me os ossos. Queria apenas adormecer para não sentir, e se adormecesse para sempre também não me importava com isso.
Sinto um pontapé nas pernas, já o sol dava ares da sua graça. Tinha finalmente adormecido e tentava descansar um pouco de uma noite mal dormida. Olho de soslaio e vejo um grupo de jovens embriagados, talvez vindos da noite, que à falta de coisas mais interessantes para fazer decidiram meter-se com um sem-abrigo indefeso.
Fraco e sem forças, levanto-me e olho para a pequena caixa de conserva de sardinha. Contém algumas moedas, não muitas, e infelizmente quase todas pretas. Mal dão para comprar pão.
Calço os sapatos de tamanho incerto, que me causam desconforto de tanto apertarem os calos, ainda por cima sendo de pares diferentes. Há um que me incomoda mais que o outro. Tento abstrair-me da dor e seguir o meu caminho.
Escolho o melhor casaco, por sinal o único do meu “roupeiro”, que não é mais que uma simples mochila. É um casaco bonito e quentinho, que me foi dado por uma senhora caridosa – após ter enviuvado, ofereceu-me algumas roupas do marido -, mas que por ser de número desencontrado, balança-me nos ombros como se eu fosse um cabide.
Pena o falecido ser tão grande! Ou sou eu que sou pequenino?
Dirijo-me às imediações de alguns restaurantes e hotéis, sabendo que poderei encontrar verdadeiros banquetes nos caixotes do lixo das traseiras, mas muita gente teve a mesma ideia que eu. Vários mendigos vasculham os caixotes e tentam aproveitar a mais ínfima réstia de comida que consigam encontrar. Alguns contentores, que ainda não foram despejados por ser domingo, são devorados por cães vadios, que espalham tudo e rosnam à minha presença.
Como uma sopa para tentar enganar o estômago e apanho algumas beatas que encontro pelo chão, para ter o prazer duma cigarrada depois de “almoço”.
De regresso ao meu lar, nada do que me pertencia lá estava. Nem mochila, nem cobertores, e até os cartões que usava como parede para me cobrir do frio.
Sentado numa mesa de café, ouvia esta história na primeira pessoa, enquanto trincava uns amendoins e bebia uma cerveja.
A personagem principal contava-me a sua história num misto de constrangimento e orgulho, entre o passado e o presente. O seu nome é José e perdeu tudo num fogo que há anos assolou a Serra da Lousã. Toda a luta de uma vida fora devorada pelas chamas cruéis, levando-lhe também a sua mulher e filha pequena.
Os seus pés mostram as cicatrizes feitas perante o desespero e a impotência, de não conseguir salvar a família das chamas vorazes.
Desanimado, deixou a sua aldeia e partiu para Lisboa sozinho. Apenas com a roupa que trazia vestida no corpo e com a esperança de uma vida melhor, na cidade que julgava ser das oportunidades.
Sem casa para morar, tornou-se num sem-abrigo, começando a mendigar pelas ruas, até perder novamente o pouco que tinha.
Sem perspectivas futuras, e quase a roçar o desespero, roubou alguns rádios de carros e pagou uma passagem aérea para o Luxemburgo.
Esta estória começa quando um dia, perdido numa rua da capital luxemburguesa, junto de um prédio em construção, ouço a seguinte frase:
“Oh boa, és mesmo o meu número”, seguido de uma gargalhada triunfante.
Olho na direcção de onde tinha surgido a frase, e sou bombardeado também.
“Está descansado que tu não és o meu número”.
“Felizmente”, respondo. Acenando a cabeça com um ar reprovador.
Talvez surpreendido por ouvir falar Português, José corou e pediu mil desculpas, uma vez que não era sua intenção ofender-me. Estava a acabar de se vestir depois de um dia de trabalho e fez questão de me pagar uma cerveja para selar o pedido de desculpas.
Aceitei o convite, e foi durante as várias cervejas que escorreram pelas nossas gargantas abaixo, que me contou o seu infortúnio e caminhada até ao Luxemburgo. Agora tem uma vida estável, quatro anos depois de cá ter chegado.
O Luxemburgo é um pequeno país situado no coração da Europa, entre a França, Bélgica e Alemanha. É também um destino frequente de muitos emigrantes portugueses, que ali procuram melhorar a sua qualidade de vida.
A história registada do Grão-Ducado do Luxemburgo começa com a construção do Castelo de Lucilinburhuc, pelo conde Sigfredo na idade média. Em torno desta fortaleza foi crescendo gradualmente uma cidade, tendo sido erguidas muralhas para proteger a jovem vila de possíveis invasões. Depois de séculos de conquistas e governos por estados estrangeiros, o Luxemburgo acabou por se tornar numa nação independente no século XIX.
O interior da fortaleza é considerado o berço do país. Muito harmonioso, limpo e organizado, é uma verdadeira relíquia viva, sendo um exemplo para a maior parte das cidades europeias.
A cidade do Luxemburgo foi declarada Património da Humanidade pela Unesco em 1994.
Na Praça Clairefontaine ergue-se o memorial da Duquesa Charlotte. Descobri por acaso o Monumento do Milénio, sóbrio mas belo, que celebrou os 1000 anos da capital, em 1963.
Gostei da cidade, pareceu-me íntima. Talvez por ter conhecido o José e a sua história, talvez por ser pequena e acolhedora, ou simplesmente por ser sedutora.
Muitas cervejas depois, o José mantinha-se despreocupado, apesar de o relógio já passar das nove horas da noite.
“José, não tens de ir para casa?”, inquiri.
“Não te preocupes, ninguém me espera. Não é fácil arranjar namorada no Luxemburgo, não gostam de homens portugueses”, disse com um sorriso malicioso.
“Tenta mudar a tua abordagem, talvez tenhas mais sorte”, sugeri.
Ambos soltamos uma sonora gargalhada e pedimos mais duas cervejas para o caminho.