Assim que entrei, deparei-me com um radiador em forma de antena parabólica e dois homens descalços a aquecer os pés. O meu anfitrião pronunciou algumas palavras para os outros habitantes e entretanto apontaram-me um lugar para me sentar e pousar a mochila, enquanto vários pares de olhos me olhavam com curiosidade. Dentro da tenda o espaço era retangular e alto, a temperatura agradável – fruto do radiador e do calor humano – e havia algum fumo. Para além disso, fora construída uma plataforma elevada em madeira e contraplacados, em forma de U invertido, que servia para manter as pessoas afastadas do solo enlameado e gelado. Esta plataforma estava cheia de edredons, sacos de viagem, ferramentas e pessoas sentadas ou deitadas a esfumaçar, a jogar às cartas ou pura e simplesmente em silêncio. Existia ainda na plataforma uma subdivisão feita com outros painéis e panos de tenda, tal e qual uma segunda mini tenda. Enquanto estava sentado fui agradecendo várias vezes – xìe xìe (obrigado) – e ao apontar para mim disse Pútáoyá (Portugal). Entretanto já tinha tirado do bolso do softshell as notas que tinha comigo – aproximadamente 11 € – e passei-as para as mãos de um deles. Progressivamente as notas foram passando de mão em mão, até me serem todas entregues. Nessa altura senti-me comovido com a nobreza daquelas pessoas.
Ofereceram-me então uma garrafa da qual bebi uns goles para aquecer a garganta e matar o bicho. Da mochila aproveitei para tirar a comida para o jantar que, depois de a oferecer aos presentes e ninguém a aceitar, comecei a comer com satisfação e apetite. Terminado o repasto, comecei a reorganizar a mochila e a tirar peças de roupa à vez: gorro, luvas, meias, polar, camisola e calças térmicas que fui mostrando às pessoas – sabendo que eram gente pobre – para ver se alguém aceitava alguma coisa. De tudo o que mostrei apenas aceitaram umas luvas polares, nada mais quiseram! Foram momentos de generosidade, simplicidade e honestidade, demonstrados por pessoas completamente desconhecidas, que me comoveram profundamente. Após a “exposição” das peças de roupa ofereceram-me cigarros, mais álcool e fizeram-me uma cama com roupa que tinham por ali. Resumindo: deram-me tudo o que tinham, sem esperar nada em troca; foram o espelho perfeito da bondade e da nobreza de carácter. Antes de nos deitarmos para dormir deu ainda para observar alguns aspetos não menos interessantes: perceber o motivo de existência da mini tenda – havia um casal entre os presentes; ver as luvas serem entregues ao trabalhador mais idoso –”meio doente” e que fumava cachimbo; ver os passos de dança, ao som da música que um telemóvel, de um chinês mais extrovertido; observar jogos de cartas e fumaradas; notar que as várias pessoas utilizavam o mesmo telemóvel – possivelmente para contactarem com a família; e compreender que aquelas pessoas eram trabalhadores da construção civil. Deitei-me feliz e a pensar na boa sorte. Compreendi que mesmo que a vida seja bastante dura, fruto da necessidade, da privação, da pobreza, das condições em que cada um trava a sua luta diária… o carácter, o bom carácter pode estar sempre bem presente e vivo na vida das pessoas… é ele que nos torna verdadeiramente nobres.
Depois de um sono relativamente tranquilo, acordei ainda de noite com o objetivo de ver o nascer do sol. A travessia até ao Pico Este foi breve e assim que cheguei observei a paisagem na penumbra de modo a escolher um poiso para observar o acontecimento. O astro rei despontou no horizonte entre as 6h50 e as 7h00, porém, em consequência das nuvens, apenas dez minutos volvidos o sol começou a iluminar a montanha. A partir desse momento, e com o passar dos minutos, uma luz dourada invadiu progressivamente a face oriental dos Picos Este e Sul, tornando a montanha num local mágico. Durante a hora que passei no pico, tirei fotografias, vi um casal de “doidos” andar à beira de penhascos vertiginosos – para além da zona das correntes – e ponderei a visita ao pavilhão Xia Qi Ting, o qual só é acessível se passarmos um penhasco com uma corda de rappel. Finalizada a deambulação, parei para tomar o pequeno-almoço e nesse momento conheci dois rapazes chineses de Guǎngzhōu (广州), que também haviam escalado a montanha durante a noite e, tal como eu, iriam regressar a Xi´an (西安) nessa tarde. Depois de conversarmos durante uns minutos, decidimos continuar juntos o resto do dia: fomos até ao Pico Sul; mostrei-lhes o exterior da tenda onde dormira; voltei a encontrar as nobres gentes do dia anterior, onde acabei por tirar uma fotografia com o “avô” – já com as minhas luvas postas – e aproveitei a presença de intérpretes para dirigir um agradecimento com mais palavras; visitámos o Pico Oeste; e, finalmente, descemos a montanha, sem nos apercebermos que estávamos a seguir um trilho que conduzia a uma “ratoeira dourada”! Eram duas da tarde quando chegámos ao portão Este de Huà Shān (华山). A minha primeira ascensão em terras do Oriente, deixou marca e conquistou-me.
Cuidado com a “ratoeira dourada de Huà Shān”
A “ratoeira dourada” consiste em encaminhar as pessoas – durante a descida – para o portão Este, em vez de as conduzir ao portão Oeste. Esta diferença, à primeira vista insignificante, conduz as pessoas a um percurso – trilho dos soldados – desinteressante e monótono. Porém a questão principal nem é essa. E se fosse até já era suficientemente grave, uma vez que impede os visitantes de observar a verdadeira beleza da montanha. O cerne da questão é que o portão Este fica a oito quilómetros do centro de Huayin (华阴市), a pequena cidade onde se encontra a estação de autocarros e comboios. Enfim, fica longe de tudo! Do portão Oeste, caso as pessoas não tenham veículo próprio – seguramente a maioria – são obrigadas a pagar um mini autocarro para regressar. Em suma, as pessoas são conduzidas a uma “ratoeira” sem o desejarem e da qual não conseguem escapar! E para os que possam pensar que ninguém é realmente obrigado a apanhar o mini autocarro, o comentário que tenho a fazer é que estão infelizmente errados! A estrada que conduz à cidade não tem bermas para peões e está cheia de curvas e contra-curvas, tornando-se um verdadeiro perigo para eventuais caminhadas. Toda esta situação, que eu considero abusiva por parte do parque natural, ganha requintes de escândalo, quando no autocarro – operado por uma empresa independente – de regresso a Xi´an (西安) pode ler-se um ALERTA – em mandarim – onde as pessoas que apresentarem o bilhete do parque natural à entrada desses mini autocarros, não precisam de pagar o bilhete do mesmo. O caricato da situação é que esta informação não está explícita em nenhum lugar! Só mesmo já no interior dos autocarros que nos levam de regresso à grande metrópole.
Sem Comentários