O galo começa a cantar, fazendo as vezes de despertador natural. Meio ensonado, levanto-me e abro a janela de madeira, para o tapete de flores que se estende diante de mim, até ao lago.
Fecho os olhos e inspiro e expiro algumas vezes, sentindo o ar puro e fresco deleitar-me os pulmões. Levanto as mãos ao céu, espreguiçando-me longa e demoradamente.
Enquanto os pulmões, como que sofregamente tentam ingerir todo o oxigénio possível, os meus olhos rejubilam perante este pedaço de céu, perdido num prado entre montanhas.
Fiquei aninhado numa cabana de pastores, suspensa sobre um mar de flores, protegida pelas montanhas.
Os rebanhos de ovelhas e cabras, fazem parte integrante da paisagem do parque. Os pastores vivem essencialmente da criação de animais.
O ar ainda está fresco, ao longe as montanhas estão pontilhadas de neve, tornando o lugar ainda mais inesquecível.
Caminho devagar, por entre a erva que estala por debaixo dos meus pés. As gotas de orvalho brotam vagarosamente das folhas, oriundas da humidade da noite, como se reproduzissem uma lágrima a escorrer pelo rosto.
O que será que as faz chorar?
Os maus tempos já passaram, só podem estar a chorar de alegria.
Talvez estejam felizes por me ver.
Desejo-lhes um bom dia, e continuo boquiaberto, olhando para tudo o que me rodeia.
Entre mim e o sol, uma águia a planar. Sigo-a com os olhos, ora aumenta de altitude, ora baixa, mas sempre na mesma área circundante. Talvez esteja a apurar a visão, ou quem sabe a preparar-se para um voo picado sobre uma potencial presa.
Pelo sim, pelo não, de vez em quando olho para o céu, não fosse eu o alvo escolhido. Até que a deixei de ver. Deve ter rumado a outras paragens.
Passei por um pastor que estava sentado ao longo de um carreiro verde, acariciando o seu cão deitado de patas para o ar, com um ar prazenteiro, e sorriso no focinho.
Cumprimentei o pastor, cumprimento esse que me foi retribuído.
Tive conhecimento através do proprietário da cabana onde fiquei, que no parque existem ursos e lobos. No início do percurso ainda pensei como reagiria num potencial frente a frente, desejando não encontrar nenhum dos dois, no entanto à medida que o dia ia passando, o meu estado de embevecimento fez-me esquecer tal facto.
Por entre prados, montanhas, e muitas flores, sigo o meu caminho em direcção ao glaciar do Lago negro.
Por vezes tive de encontrar caminhos alternativos, para evitar pisar mantas de flores silvestres, que se estendiam quase até ao limite da minha visão, colorindo o parque e tornando-o ainda mais alegre. Diria mesmo, que o parque Durmitor é feliz, e não dorme, perante tamanha exuberância de vida.
O encantamento é imediato, sendo impossível ficar indiferente a tão grande manifestação de beleza.
Parado em frente ao lago Negro, fiquei com a sensação de que os meus olhos estavam purificados, tal a vivacidade com que conseguia discernir as cores.
A nitidez com que a natureza aqui se manifesta é avassaladora. Fiquei com a sensação de estar a ver melhor. As águas são verde-esmeralda, de uma transparência tal que perdi a noção de profundidade.
Lá em baixo vejo as pedras no fundo, e os peixes a nadar, como se estivesse suspenso no ar e tudo planasse por baixo de mim.
Tento tocar no fundo, mas está demasiado profundo para se deixar tocar.
As árvores transpiram fotossíntese, lúcidas e altivas, no alto do seu porte olham para mim como se quisessem receber-me no seu regaço. A biodiversidade de verdes, espelham felicidade que emanam através das folhas.
Daí, as lágrimas que lhe escorriam há pouco.
Ao fundo a montanha. Estico o braço para tentar tocar-lhe, mas não consigo. Tudo é demasiado transparente, quase me fazendo perder a noção de perspectiva.
Não há um pingo de poluição, o ar é dos mais puros que os meus pulmões tiveram oportunidade de inspirar. Já deram sinal ao meu coração, que pula de felicidade.
No lago, um barquinho de madeira, sem nunca ter sido pintado. Apenas de madeira, queimada pelo sol que nela incide há longos anos.
Nele está um senhor de cabelo e barba branca, calmamente a pescar a cerca de 30 metros da margem.
Vejo-o pescar um peixe, e depois outro, seguido de outro.
O sol continua forte, querendo derreter os últimos farrapos de neve que cobrem o cume da montanha que me vigia. Sentado na erva fofa continuo, a degustar todo o manancial de natureza que vem até mim.
De regresso à margem, o senhor de cabelo e barba branca rema calmamente, sempre ao mesmo ritmo, rasgando suavemente as águas calmas.
Descalço sobre a proa estende-me o braço, com um saco de rede onde estão os peixes.
Hesito, olho para trás de mim, pensando que se dirigia a outra pessoa que não eu. Mas não vejo ninguém nas minhas costas. Nem em meu redor.
Dirijo-me ao barco, e agarro o saco de rede.
Com a mesma destreza que teria com menos trinta anos, o senhor, de pés descalços, salta de cima do barco para cima das pedras molhadas.
“Obrigado”, agradeceu.
”De nada. A pescaria foi boa.”
”É apenas uma distracção. Vai ser o meu almoço de hoje.”, disse sorrindo enquanto coçava a nuca.
”Belo almoço. Bom proveito.”
”Espanhol?”
”Não. Português.”
”Não é normal ver turistas por aqui.”
”Eu não sou turista. Sou viajante.”
”Já almoçaste viajante? O peixe é muito para mim, já não tenho o apetite de outrora.”
O peixe assado sobre brasas, e estava delicioso.
Foi um privilégio ter almoçado em tamanha companhia. Peixe acabadinho de ser pescado e num lugar paradisíaco.
Viajar é viver o país, viver as pessoas, e como é bom viver tudo isso!
A transparência continuava no ar, não havendo nada que me separasse de qualquer outro elemento, nem o ar, nem a água, tal era a sua limpidez.
As pessoas honestas e generosas, abriram as portas dos seus corações, dividiram refeições, manifestaram um comportamento límpido e sem subterfúgios, demonstrando também a sua transparência.