Mais uma bomba, e mais outra, seguida de outra. Os quatro torpedeiros ancorados em frente às muralhas continuavam sem dó nem piedade a bombardear a “cidade muralhada”, destruindo moradias, telhados, bibliotecas, cafés, restaurantes, igrejas e a própria muralha.
A cidade permanecia indefesa, perante o ataque tão massivo da Marinha Montenegrina e Sérvia, que no decorrer da guerra civil, além de muitas barbaridades cometeram o crime de bombardear, uma área declarada Património da Humanidade pela Unesco, a 6 de Dezembro de 1991.
Os sinos tocaram em sinal de alarme, as pessoas corriam pelas ruas tentando refugiar-se das bombas que caíam por todo o lado.
Uma menina, com os seus 5 anos, perde-se da mãe durante a fuga, a sua casa tinha sido completamente destruída, poucos minutos depois da sua mãe ter agarrado nela e no irmão mais velho, para procurarem abrigo num local seguro. O pai, juntamente com outros pais, tentavam defender a cidade, os seus haveres, as suas famílias.
Passadas algumas horas, esta bela cidade amuralhada, resumia-se a um monte de escombros, escondendo muitas famílias perdidas, vidas interrompidas, em nome de uma estúpida guerra civil.
O pai da menina jazia morto, agarrado à sua arma em cima da muralha. A mãe e o irmão fazem parte dos desaparecidos, soterrados debaixo de um qualquer edifício em destroços provocados pelo bombardeado.
Nina chora, sem que ninguém se aperceba, descalça, desamparada e só, no meio de todo aquele caos, de salve-se quem puder. O desespero é geral, ouvem-se gritos de angústia pelos entes perdidos, e de dor pelas feridas causadas.
Vejo as imagens do bombardeamento de 1991, e não pude deixar de sentir revolta. Sinto um arrepio, uma tristeza súbita que me assola o coração.
A curiosidade foi aguçada, pelo mito que é Dubrovnik, e como renasceu após esse bombardeamento. Já passaram 10 anos desde essa tarde infeliz.
Como recuperou da tragédia?
Numa das portas da cidade, existe uma placa com a seguinte inscrição em latim.
“Nem por todos os tesouros do mundo venderíamos a nossa liberdade”.
Entro pela Porta da cidade “Pilha”, que me possibilita uma vista assombrosa sobre o Forte Lovrijenac.
Na entrada, um cidadão Italiano explica o seu filho a história da cidade, junto a uma placa com o mapa da cidade, e a descrição de onde caíram as bombas dentro das muralhas. Mais fácil seria indicar onde não caíram. O mapa está coberto de pontos vermelhos, indicando da queda de uma bomba naquela zona.
Não posso deixar de reparar nestas duas gerações de Italianos, presumo que pai e filho, em que o pai didacticamente explica ao filho o que acontecera há dez anos atrás, e o significado daquele mapa.
Registei uma frase dita pela criança, e que me deixou a pensar.
“Que homens maus poderiam fazer isso?”
É verdade, que homens maus poderiam destruir algo tão belo?
A ofensiva provocou estragos consideráveis, no centro histórico, deixando os habitantes sem água e electricidade, durante mais de cem dias.
A guerra terminou em 1995, e a Croácia juntamente com a comunidade internacional, envidaram todos os esforços para reconstruir a cidade velha, entre as muralhas, que tinha ficado muito devastada pela guerra.
O restauro, foi efectuado de acordo com o original, tendo sido muito difícil e demorado. Principalmente devido aos telhados típicos feitos de telhas de terracota. O fabrico destas telhas era muito demorado, o barro era moldado à mão como uma pasta, e depois feito no formato de um fémur, antes de ir ao forno. Uma vez que a fábrica, onde se faziam estas telhas já tinha fechado há muito tempo, todo este processo ficou congelado durante algum tempo, correndo-se o risco da restauração não ficar exactamente igual ao modelo original.
Felizmente foi descoberta uma fábrica em França, que fabricava telhas idênticas, e possuía 200 000 que poderia disponibilizar de imediato. As restantes telhas, vieram 400 000 de uma fábrica da Eslovénia, tendo sido fabricadas as restantes 100 000 numa fábrica em Zagreb. Toda a reconstrução foi efectuada com mestria, tornando quase imperceptíveis as cicatrizes da guerra no interior das muralhas.
Dubrovnik, reerguia-se novamente, como se fosse um Gladiador no meio das muralhas, resistindo ao tempo, às guerras e à maldade do homem.
A cidade velha obriga a uma visita demorada.
Passo a passo, inspiro e expiro a cada passo que dou, sinto a coragem das gentes, a coragem da cidade que teimou em não morrer, que lutou com todas as suas forças para ser como era, bela como nunca, carismática como sempre.
Entro e saio por todas as ruas, por todas as lojas, por todos os cafés. Dubrovnik merece ser vivida com intensidade, por ela ser também uma cidade viva.
A zona central da cidade velha, é rasgada por uma longa avenida pedonal em todo o seu cumprimento, a “Placa”. Percorrendo-a, sinto a Croácia no ar, gente jovem, bonita, bem vestida e divertida, com sorrisos nos lábios desfrutando o sol, que se esbate sobre o Adriático.
Estou rodeado de lojas, cafés, restaurantes e edifícios com fachadas soberbas. Aproveitei e comprei uma caixinha de pensos rápidos numa farmácia, que é simplesmente a terceira mais antiga da Europa, ainda em funcionamento, tendo sido a primeira a abrir ao público. Fica situada num mosteiro Franciscano. A caixa de pensos, ainda a guardo religiosamente como recordação, espero não vir um dia a precisar deles.
O céu continua azul. Entre os edifícios, ergo a cabeça aprecio-o, pontilhado por manchas brancas, representadas por gaivotas que planam aqui e ali, em paz.
Um pouco à frente, a animação é feita por um grupo de jovens que tocam e dançam uma espécie de folclore, animando quem passa, e contagiando todas as pessoas com a música alegre que entoam.
Entro no Palácio Rector, onde se realizam festivais de música clássica e de Verão, no meio de capitéis esculpidos.
Delicio-me com o Palácio Sponza, um maravilhoso edifício com uma impressionante entrada renascentista e janelas de estilo gótico. Um mimo para qualquer apreciador de arte.
Entro por uma rua, saio por outra, sem obedecer a qualquer regra ou roteiro. É bom divagar sem destino, como se estivesse embriagado pelo amor, e percorresse um corpo, com o intuito de o explorar até aos limites.
Dou de caras com uma pequena praça perdida entre muralhas, demasiado pequena para ser referenciada por qualquer guia. São estas pequenas praças, ruas ou fontes que dão personalidade aos lugares.
Sentado à sombra, no chão da velha praça, sinto o frio da pedra romana que me refresca o corpo, enquanto recupero forças. Espera-me lá em cima, a muralha. Tenho a sensação que vou subir ao céu, e desfrutar da vista privilegiada das gaivotas.
Subo ao céu, a vista é de tirar o fôlego. A cidade é um encanto.
Sinto que estou a pisar as nuvens, a beleza rouba-me as palavras. Aprecio-a em silêncio sentado nas muralhas.
Estão muito bem preservadas, tendo sido construídas no século XIII e reforçadas no século XV, para fazer face aos ataques Turcos, chegando a atingir em certos pontos 6 metros de espessura. Têm uma extensão de aproximadamente dois quilómetros e cercam toda a cidade antiga, chegando a atingir os 25 metros de altura.
Continuo mudo, apaixonado, estarrecido, sem adjectivos para classificar o que tenho diante de mim.
Vou convalescendo, recuperando o domínio sobre os sentidos., que me tinham deixado absorto de estupefacção.
Dentro das muralhas, um mar agitado pela ondulação das telhas vermelhas e ocres. Aqui e ali uma torre se levanta, como vagas em dias de tempestade, para de seguida dar lugar à bonança, reflectida na acalmia das praças.
Para lá das muralhas, o Adriático apresenta-se límpido e reluzente, sereno e interminável como se fosse um extenso chão azul, que me levasse no seu passeio, até à linha do horizonte.
Depois de percorrer metro por metro a muralha, o merecido descanso.
Enquanto percorro as ruas, cruzo-me novamente com as duas gerações de Italianos, supostamente pai e filho, que tinha visto inicialmente na Porta de cidade “Pilha”.
O miúdo corre atrás de uma bola com a camisola número 10 da selecção Italiana. Despreocupado, e talvez já esquecido que naquele sitio onde chutava a sua bola, muito provavelmente teria caído uma bomba, referenciada no mapa.
Como seria muito melhor este mundo, se todos fossemos eternamente crianças, desprovidas de interesses e maldades, apenas genuínas.
Entro no “Gradska Kavana”, atravesso o café para ir desaguar na esplanada com vista para o porto. É considerado o melhor café de Dubrovnik, a sua localização é excelente e a vista soberba.
Ao longo da costa entrecortada, vejo barcos de pesca atracados, o barco-taxi a partir para a cidade de Cavtat, e outros que levantam amarras para o passeio do piquenique de peixe, na ilha vizinha de Lokrum.
Sinto o sol bronzear-me o rosto, penso em tudo aquilo que os meus olhos tiveram oportunidade de ver. Olho em frente e aprecio a costa e a sua forma esbelta.
Tem uma personalidade forte, formas esbeltas, sedutora, sinto um amor à primeira vista. Como se quisesse resistir, e ao mesmo tempo quisesse deixar-me levar.
Abandono a cidade, com o coração cheio de amor e a bater muito forte, como se quisesse sair do peito e ficar ali para sempre.
Tento convencer-me que é apenas uma cidade, não uma mulher.
Subo a estrada, afastando-me aos poucos, olho para trás e vejo as muralhas ao fundo a flutuar no azul do adriático, aprecio novamente as suas formas, com a sua costa entrecortada, consigo perfeitamente distinguir-lhe o rosto, os ombros, os seios, a curva da cintura e até as suas longas pernas.
Sussurro-lhe ao ouvido.
“Amo-te Dubrovnik”.
Obrigado Ricardo. Tive oportunidade de conhecer Dubrovnik em 2001, a guerra não tinha terminado há muito tempo, e o turismo de massas ainda não olhavam para a antiga Jugoslávia como olha hoje. Recomendo vivamente a Croácia. Abraço