A viagem de Nyangshwe a Nyaung-U prometia ser épica, com as pelo menos 10 horas enfiado num autocarro, sem ar condicionado, que iria percorrer nas estradas secundárias pelas montanhas do centro de Myanmar. Apesar de serem dois dos pontos mais turísticos do país – lago Inle e Bagan –, aparentemente a única ligação de autocarro que existe é uma carreira normal, ou foi assim me convenceram no hotel, mas aceito que tivessem ganho alguma comissão com esta companhia.
O dia prometia ser longo, com o autocarro a arrancar às cinco da manhã, por sinal uma hora bastante razoável, pois há horários de partida / chegada tão improváveis e cruéis para uma boa noite de sono, como as três da manhã. E começou logo com um táxi para o terminal rodoviário a ter de alterar o percurso, com hora e preço também várias vezes alterada, em sequência das estradas cortadas pela chuva diluviana que tinha caído nos últimos dias. Na versão final o combinado foi um tuk-tuk, que na verdade era uma mota com atrelado, bancos de metal corridos e duros, e que deveria estar no hotel às 3h45 da manhã para nos levar por um caminho alternativo em zonas mais elevadas. De uma maneira geral as estradas em Myanmar são más, antigas e com pouca manutenção, algo que iriamos sentir nas costas várias vezes ao longo do dia…
O nosso trajecto preliminar seria uma agitada hora por caminhos rurais e aldeias, sentado num banco de um atrelado sem suspensão, onde cada solavanco da estrada atirava as costas violentamente contra as barras de ferro que nos impediam de cair borda fora. Uma hora com ar fresco da madrugada numa zona de montanha – o Lago Inle está a mil metros de altitude –, onde várias vezes o motor da moto parecia perder potência, chegando mesmo a passar-me pela cabeça que ainda chegaria a pé ao terminal. Tudo isto fez com que ficasse-mos bem acordados, apesar das três ou quatro horas de sono. Na minha cabeça, e a cada salto, só pensava em chegar ao autocarro e aproveitar as horas de menor calor para reclinar o banco e dormir o que conseguisse antes que começasse a sentir a falta do ar condicionado.
A verdade é que só iria dormir 17 horas depois…
Perto do terminal, e já fora daquelas escuras e agitadas estradas, o meu sentido de humor foi-se animando ao passar pelos autocarros velhos que faziam as carreiras locais, imaginando o que seria fazer a viagem num chaço daqueles.
O tuk-tuk parou mesmo em frente ao autocarro que ia levar-nos a Nyaung-U, coisa habitual e bastante útil em Myanmar, em especial nas enormes e caóticas estações de Yangon ou Mandalay. E apesar de ainda ser escuro, pois ainda não eram cinco da manhã, não foi preciso muito tempo para perceber que a caixa de fósforos onde ia passar o resto do dia, era pouco melhor que todas as outras com que tínhamos acabado de cruzar-nos no caminho, e sobre os quais tínhamos feito piadas, umas atrás das outras. O karma tem sentido de humor, por sinal bem estranho, e troca-nos as voltas quando menos esperamos…
O que nos esperava era um minibus coreano reciclado e já com bastante uso – muito mesmo –, embora uma boa parte desse uso nem sequer será birmanês. Myanmar é o fim de linha de sucata da região: autocarros, camiões e automóveis que já não passam na inspecção na Coreia do Sul, Japão e, provavelmente, Tailândia. Todos vêm aqui parar, ganhando um novo fôlego e são usados literalmente até partir – o travão de mão deste era um calço de madeira.
Ao sair do tuk-tuk fomos recebido pelo sorriso caloroso do condutor enquanto dizia: “foi uma viagem acidentada!”. Pois foi! Não deixava era de pensar que o que vinha a seguir não seria muito melhor… Fomos “encaminhados” para o nosso lugar – apesar de tudo havia lugares marcados –, que é outra maneira de dizer que andamos momentaneamente feitos parvos à procura dos números. Apercebendo-se da situação, um dos funcionários veio em nosso auxílio e apontou-nos os lugares que sabia de cor, até porque éramos e iríamos ser os únicos estrangeiros durante toda a viagem. Horas depois reparei que os números estavam escritos nas costas de contraplacado dos bancos, tão esbatidos que quase se confundiam com a cor da madeira. Além disso estavam em birmanês, o que não teria ajudado em nada, mesmo que tivéssemos reparado logo quando chegámos. O lado oposto dos bancos – a parte onde nos sentamos –, eram pouco mais que tábuas cobertas por um tecido verde e gasto, intercaladas por uma fina camada de esponja que pouco suavizava a sua dureza. Enquanto nos tentávamos acomodar a um lugar demasiado alto e com umas costas demasiado verticais, a nossa bagagem eram carregada como todas as outras malas, sacos e caixotes: por debaixo dos bancos e em todo o espaço livre disponível. De repente o espaço vazio entre os meus pés e o chão desapareceu. Menos um problema!…
Durante a hora que o tuk-tuk demorou até chegar ao terminal, fui várias vezes reconfortando o espírito pensando: “dentro de pouco tempo estarei no autocarro, poderei encostar-me e dormitar um pouco antes que o calor aperte”. Agora era claro que isso seria de todo impossível a minha luz ao fundo do túnel passou a ser a piscina – que viajar não pode ser só dureza e desconforto – do hotel em Old Bagan, onde iria ficar os dias seguintes, mas com a diferença que esta luz ao fundo do túnel estava agora a uma dezena de horas de distância.
Pouco a pouco foram chegando os restantes passageiros, alguns dos quais iriam fazer a viagem quase toda connosco, como é o caso de uma jovem mãe e o do filho que, tal como eu, passou grande parte da viagem com a cabeça metida do lado de fora da janela – pelo menos enquanto não dormia ou eu me metia com ele. Em mais de trezentos quilómetros e dez horas de carreira local, houve muita gente que entrou e saiu num sem número de paragens. Felizmente a lotação nunca esgotou. É que os bancos para além de altos, duros e demasiado direitos, eram também demasiado estreitos para acomodar duas pessoas lado a lado, mesmo sendo uma dessas pessoas um pequeno e atlético birmanês. Menos outro problema!
Pontualmente às cinco da manhã arrancámos para Nyaung-U: a porta de entrada para Bagan. Em Myanmar tudo parece ter uma abundância fora do comum, com demasiada gente para cumprir um serviço, pelo menos aos olhos de um europeu. Restaurantes com mais empregados do que mesas para clientes, ou hotéis com tantos funcionários que por vezes se perde a conta de quanta gente ali trabalha, são apenas dois bons exemplos. No nosso autocarro, com uma lotação de apenas vinte pessoas, havia um condutor, único para toda a viagem porque aqui não há limites legais que obriguem a períodos de descanso; o cobrador que recebia o dinheiro dos bilhetes, que devia ser mandava ali e passou o tempo quase todo sentado; e, por fim, a minha personagem preferida dos transportes públicos em Myanmar: o faz-tudo que carrega as bagagens para dentro, coloca o calço de madeira na roda mal o autocarro pára e fica a maior parte do tempo pendurado na porta, anunciado o destino e ajudando nas ultrapassagens.
Ajudar nas ultrapassagens é essencial em Myanmar, tendo em conta que nos anos 70 passou-se a conduzir à direita, mas a maior parte dos veículos em circulação não estão ainda preparados para tal: são anteriores a essa mudança ou são os usados em terceira mão importados do Japão. Seja como for, em ambos os casos, o volante está à direita, pelo que ter um par de olhos extra para ajudar com o tráfego em sentido contrário é essencial! O nosso faz-tudo era um verdadeiro personagem, um “Cristiano Ronaldo wanabee”, provavelmente da mesma idade do original mas um pouco mais “gasto”, com bigode e vestido de longyi, constantemente a mascar betel. No autocarro qualquer das três personagens mascava, mas ele em particular. Mascava como se não houvesse amanhã, tanto que demorei a perceber se tinha uma falha grave de dentição, ou se tinha os dentes mais manchados de vermelho que vi em todo o país. Mais tarde, e com a luz do dia, percebi que era a segunda opção. Talvez fosse ali a sua fonte inesgotável de energia. É que para além de todas as funções que acumulava, não parava sentado e estava sempre atento aos Budas reclinados e pagodes que se cruzavam no nosso caminho, que prontamente gostava de me apontar, já para não falar das muitas vezes que se deslocava à porta para cuspir os escarros tingidos de vermelho do betel.
O autocarro foi passando por paisagens tipicamente asiáticas e outras nem por isso, como é o caso dos enormes vinhedos trazidos pelos ingleses – a última coisa que se espera ver na Ásia são latadas carregadas de cachos de uva. Pouco a pouco, sempre por estradinhas locais, o caminho foi-se afunilando num serpentear que se aproximava de Kalaw. Infelizmente era dia de mercado, e digo infelizmente porque não tive oportunidade de parar para juntar mais uns “disparos” fotográficos à minha colecção de mercados de Myanmar. É que apesar de o autocarro ser daqueles que paravam em todas as capelinhas, as paragens são sempre feitas, sem excepção, num verdadeiro contra-relógio e com o mesmo ritual: ainda em andamento, o “faz-tudo” anuncia a plenos pulmões o destino – acredito que era isso que dizia – e salta porta fora até que o autocarro se imobilize para accionar o travão de mão – colocar o calço de madeira numa das rodas. Segue-se um verdadeiro cerco de vendedores que tentam vender uma “bucha”, quase sempre através das janelas, enquanto entram e saem os passageiros. Por fim é dado o sinal para o condutor retomar a marcha, sendo que o pagamento e o acordo para o local de saída são já feitos em andamento. São dezenas de paragens ao longo de uma viagem que não parece ter fim, na generalidade dos casos com um intervalo de breves minutos, e onde apenas três são ligeiramente mais demoradas: o almoço, sete horas depois de arrancarmos e a primeira vez em que estiquei as pernas; e dois abastecimentos de diesel, um deles numa das muitas “áreas de serviço” que vendem combustível em antigos garrafões de água.
Sendo Kalaw uma base popular para vários trilhos de trekking na extensa região montanhosa que a envolve, à medida que a estrada penetrava o coração da região, foi-se tornando cada vez mais um trilho e menos uma estrada – cada vez mais terra batida e cada vez menos alcatrão. É possível que a última manutenção tenha sido feita pelos ingleses, ainda antes da Segunda Guerra Mundial, tais eram os solavancos, mesmo viajando a uma velocidade próxima da marcha humana. Em tempos contaram-me que quando se corre uma maratona, o corpo chega a um ponto que deixa de doer. Algures por esta altura aconteceu o mesmo com o meu, pois é como que se tivesse assimilado que as coisas não iam melhorar e que não valia a pena queixar-se. O certo é que a viagem ficou bem mais tolerável a partir daqui.
Conforme nos aproximávamos de Meiktila, as montanhas, cobertas de densas florestas luxuriantes, davam lugar à planície e a estrada voltava a ganhar uma camada de asfalto digna desse nome, agora até com algumas rectas. Em contrapartida, o clima, ameno e fresco, ficava também para trás e o ar era agora tórrido e seco. Apesar de ainda faltarem umas boas horas até chegarmos a Bagan, era um sinal que estávamos a aproximar-nos do ambiente que iríamos encontrar nos próximos dias.
A verdade é que ao fim de dez horas, traduzidas num dia inteiro de estrada, eu estava feito num trapo. Foram quatro as viagens que fiz por terra em Myanmar e esta foi sem dúvida a mais desconfortável, mas de longe a menos aborrecida e única onde não tirei o iPod da mochila. Talvez o segredo esteja no facto do autocarro não ter passado os vídeos pop birmaneses, que me aborreceram nas restantes viagens, pois eram demasiados estímulos a contribuir para bloquear os sentidos.
Onze horas e meia depois de entrar no autocarro chegámos a Nyaung-U, uma hora e meia depois do previsto. Afinal a pontualidade não é por aqui uma virtude. A piscina do hotel estava cada vez mais perto, e desta vez não houve nenhuma surpresa!
Excelente. É para me ir preparando. Myanmar está muito acima na minha lista de prioridades de viagem :-)