Um uivo de espanto ecoou pelas florestas envolventes. O povo entoava gritos ensurdecedores, enquanto erguia os punhos no ar, venerando o seu Deus.
No cimo da Grande Pirâmide, um homem envolto em plumas e penas de pavão praticava o culto da representação Chac, o Deus da chuva.
“As nossas terras estão secas!”, gritou.
Milhares de vozes, cá em baixo reagiram de imediato, num “Ehhhhhhhhhhhhh!” colectivo.
“Temos de dar oferendas ao nosso deus”, gritou novamente o homem emplumado.
Enquanto quatro elementos seguravam cada perna e braço de um prisioneiro, em cima de um cepo de madeira, uma espada desceu-lhe sobre o pescoço, separando a cabeça do resto do corpo, num golpe seco.
“Ehhhhhhhhhhhhhh”, o povo em gáudio reagiu colectivamente, num festim contagiante.
O coração ainda a pulsar, entre os seus dedos foi erguido aos céus, enquanto cá em baixo o povo gritava, agora com mais firmeza.
“Seremos o povo mais próximo de deus”, gritou enquanto o sangue lhe escorria pelos braços, e o coração ia parando de latejar, até ficar completamente inerte.
“Seremos os donos do tempo”.
“Temos de dar oferendas ao nosso deus, para que nos abençoe com as suas chuvas”, e atirou com o coração sem vida para o interior de uma jaula, onde um jaguar se banqueteou.
Para o povo Maia, o Jaguar era um a animal sagrado.
A cabeça do prisioneiro foi erguida aos céus, e depois rolou sem expressão pela escadaria, cuspindo laivos de sangue a cada embate, até quedar-se no fundo de uma rede, agarrada pelas mãos fortes de um guarda, que se encontrava na base da pirâmide.
Passados mil anos, a antiga capital do Império Maia permanece deslumbrante, e mais tranquila, adormecida à sombra dos sacrifícios humanos, de outrora.
Chichén Itzá significa “Boca do Poço”. Tal como o nome indica, era um local onde abundava água fresca, razão pela qual os primeiros habitantes a escolheram para viver.
El Castillo é o símbolo de Chichén Itzá, datado do ano 800 d.C. é uma imponente pirâmide construída em honra de Kukulcán. O seu traçado astronómico tem uma simetria perfeita, com quatro escadarias grandiosas viradas para os pontos cardeais.
O povo Maia possuía profundos conhecimentos astrais, representados na construção da pirâmide. Cada uma das quatro faces das escadarias dispõe de 91 degraus, que somados à plataforma superior, perfazem 365, nem mais nem menos que o número de dias de um ano comum.
Os 52 painéis do terraço correspondem ao número de anos de um ciclo do calendário Maia, e cada face dos nove terraços encontra-se dividida por uma escadaria de dezoito secções, representando os dezoito meses Maias.
Um espectáculo impressionante é o que se regista todos os anos, ao nascer do sol durante os equinócios da Primavera e Outono.
A precisão dos eixos do El Castillo com o sol e a lua, exactamente ao meio-dia, dos dias 20 de Março e 23 de Setembro desenha um espectro de magia, vislumbrando-se uma sombra que faz lembrar uma serpente gigante, deslizando desde o topo até à base da grande pirâmide.
Todo este complexo de ruínas está assente num vasto e aparado relvado, dando-lhe uma aura de frescura. Subi cautelosamente os 91 degraus que me separavam do topo, cruzando-me com muitas pessoas que seguiam no caminho inverso, mas de costas.
Porque razão, alguém desceria tal escadaria de costas?
Percebi quando chegou a minha vez de descer. Vista de cima, a escadaria é realmente íngreme, por isso susceptível de criar vertigens.
Finalmente atingido o topo, sou recompensado com uma visão soberba sobre as ruínas Maias, ainda em imaculado estado de preservação.
Visto de cima, tudo parece pequeno a meus pés, num raio de 360º, desde o Templo dos Guerreiros, o Grupo das Mil Colunas, o Campo do Jogo da Bola e o Observatório.
O Sr. Tevez explicava ao grupo que o acompanhava a história d’El Castillo com um entusiasmo contagiante, desde a sua construção aos sacrifícios ali praticados. Eu apenas queria desmarcar-me do grupo por breves momentos, e explorar por mim próprio, além de tentar bater umas belas fotografias. Mas quando tentava, era observado por cima do aro dos seus óculos, que com um olhar fulminante me trespassava, obrigando-me a permanecer no “rebanho”.
Tentativa aqui, tentativa ali, dei por mim sozinho junto ao Templo dos Guerreiros, sem “rebanho”, e sem Sr. Teves.
Agradeci aos céus e a todos os deuses Maias por esta libertação, permitindo-me também o meu espaço de introspecção.
O Templo dos Guerreiros é uma pequena pirâmide decorada com esculturas, do Deus da Chuva Chac e da Serpente Emplumada Kukulcan.
Junto ao templo o Grupo das Mil Colunas, situado numa enorme praça que terá servido como mercado, em que as colunas de pedra laboriosamente esculpidas se estendem até perder de vista. Noutros tempos serviram de suporte a um telhado, que hoje já não existe.
Olhei por entre as colunas, e pareceu-me ver o Sr. Tevez inquieto, o grupo parecia ter-se diluído à medida que o tempo avançava. Talvez procurasse algumas “ovelhas” fugidas do seu rebanho. Ocultei-me por entre as colunas, esperando que focasse a sua atenção noutro ponto de interesse, para poder continuar a minha expedição solitária.
Reapareci por cima de uma coluna, perscrutando com um olhar cuidadoso a presença do inquisidor Sr. Tevez, mas não vislumbrei qualquer vestígio seu.
Dirigi-me para o Observatório, conhecido por El Caracol devido à sua escadaria em caracol. Este edifício servia de planetário, com duas plataformas rectangulares o observatório dispõe de uma impressionante escadaria interior em forma de espiral. As fendas na cúpula estão alinhadas com os pontos cardeais, e correspondem a posições de certos corpos celestiais em datas importantes do calendário Maia.
O imenso relvado começava a apinhar-se de gente, de camisas coloridas e chapéus de palha para se protegerem do calor, incluídos noutros “rebanhos”, tendo os seus Srs. Tevez como pastores.
Estanquei na bancada do Campo do Jogo da bola para descansar um pouco, enquanto imaginava os prováveis jogos que ali tinham decorrido. O campo tem uma extensão de 168 metros de comprimento e possui em cada parede lateral um aro esculpido, por onde se fazia passar a bola. Não devia ser uma tarefa fácil, exigia alguma habilidade, dada a altura a que se encontra do chão.
Parado de mãos nas ancas, observava-me com um ar reprovador.
“Realmente”, disse enquanto acenava negativamente a cabeça, as mãos continuavam agarradas às ancas.
“Queres encontrar um Português, está num campo de futebol”, acentuou o tom grave, como se tivesse acabado de fazer algo imperdoável.
“Não é isso, Sr. Tevez, apenas queria estar um pouco só, para viver este lugar mágico”, tentei explicar, sem que o tenha conseguido convencer.
Com todo o grupo finalmente junto, depois do grande esforço dispendido pelo guia, seguimos para a parte norte, até ao Poço Sagrado.
Um enorme abismo negro precipitava-se a nossos pés, com cerca de sessenta metros de diâmetro e uma forma circular, era aqui que se prestavam alguns sacrifícios em nome do Deus da Chuva “Chac”.
Os prisioneiros eram oferecidos a “Chac”, para que este os abençoasse com chuvas durante todo o ano. A altura de vinte e cinco metros provoca calafrios na espinha só de pensar. Os prisioneiros percorriam uma prancha empoleirada sobre o vazio, até se precipitarem num último mergulho nas águas negras do poço. Supostamente “Chac” estaria alojado neste lugar, à tona de água para receber de braços abertos as oferendas.
A manhã já se despedia, e o extenso relvado estava agora quase intransitável, mais turistas que ruínas.
A escadaria do El Castillo era agora uma manta colorida, pelos pólos e t-shirts de todas as cores e feitios.
Parámos no sopé da pirâmide, para refrescar a alma e ouvir uma última explicação do zeloso Sr. Tevez.
Quando olhei para cima, para observar os farrapos de nuvens paradas e suspensas no céu azul, senti-me pequeno perante toda aquela grandiosidade.
Pensei no povo que aqui viveu e nos seus avançados conhecimentos. Donos de uma intelectualidade invulgar, mas ao mesmo tempo brutalmente selvagens. Possuíam uma linguagem própria e uma cultura muito particular, que acabou por ser dizimada pela “civilização” e desbravamento da potência Hispânica.
Cerrei os olhos por breves instantes, e consegui sentir a mitologia do lugar e a sua atmosfera mágica. Os aromas pairavam no ar, enquanto um linguarejar estranho ecoava por entre a multidão.
Com receio, fui descerrando os olhos como se fossem uma persiana abrindo lentamente, pouco a pouco, sem saber o que descobriria à minha frente.
Rostos de outrora pousavam em corpos musculados, que por sua vez vestiam roupas de outras eras. Faces redondas olhavam-me espantadas, pela minha impertinente presença em terras sagradas.
A rolar pela escadaria da pirâmide, algo se dirigia na minha direcção. Quase por instinto desviei-me, para evitar tocar-lhe.
Era apenas uma bola, que uma criança tinha deixado fugir das suas mãos, no cimo da pirâmide.