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Carcassonne – Os segredos das muralhas

Enquanto devorava quilómetros, os campos de girassóis testemunhavam a minha passagem, sob um céu límpido que lhes permitia estar sempre de olho no sol.

Aldeias graciosas lânguidas sobre colinas olhavam de soslaio, através das suas paredes ocres cujo tempo não passou, em que as vidas passam calmas num charme rural que nos reconforta a alma.

As vinhas vêem receber-me, após os extensos campos de girassol, levando-me pela estrada fora, rodeando-me como se fosse uma ilha perdida abraçado por vinha de todos os lados.

A paisagem espreguiça-se em colinas, que aos poucos se elevam para dar lugar a pequenas montanhas, para depois voltarem a declinar sob pequenos vales.

Ao fundo uma enorme muralha fortificada. Dourada pelos raios do amanhecer, brilha sobre um planalto quebrando a rotineira paisagem de vinha, como se caísse ali por obra do acaso.

Uma longa extensão de torres e muralhas, fazem de Carcassonne a maior cidade fortificada da Europa.

Carcassonne é uma cidade medieval em perfeito estado de conservação. Com uma visão deslumbrante de torreões e muralhas dominando a Ville Basse, coroa uma colina abrupta sobre o rio Aude.

A cidade foi fortificada pelos Romanos nos séculos I e II a.C., desempenhando um papel essencial na maior parte das guerras da idade média.

La cité é a chamada cidadela, ou a cidade medieval fortificada. Ao entrar pela porta principal, sinto que estava a fazer uma viagem no tempo. As ruas calcetadas com uma calçada milenar, as fachadas de pedra dos edifícios, e até mesmo as lojas parecem ser de tempos idos.

Ruelas estreitas e toscas afluem para pequenas praças, onde se ajunta sempre um grupinho de homens, discutindo as últimas novidades ou os temas de sempre.

O ar está impregnado com o cheiro do pão a cozer. O meu sentido olfactivo traiu-me e deixou-se encantar pelo aroma do pão fresco.

Dou comigo estático defronte de uma boulangerie. Alguns a pé outros vindos de bicicleta, todos parecem convergir para aqui, saem sorridentes com uma baguete estaladiça debaixo do braço, enrolada apenas num pedaço de papel demasiado curto.

Uma jovem monta a bicicleta e desaparece no empedrado, guiando apenas com uma mão, uma vez que a outra segura duas baguetes estaladiças.

Barrei uma com manteiga, e fechei os olhos para melhor a saborear, deliciosa, estaladiça, aromática e ainda quentinha, derretendo a manteiga que tinha dentro de si.

Segui até à Basílica de St-Nazaire, a jóia antiga da cidade. Datada dos séculos XI a XIV é uma verdadeira obra-prima arquitectónica.

Nave central da basílica de Saint-Nazaire e Saint-Celse.
© Steve Collis ( CC BY 2.0 )

Passei com a mão pelas muralhas enquanto as percorria. Estarrecido pela sua altura e extensão, estas contaram-me a inúmeras batalhas que aqui se desenrolaram. As suas torres e muros de defesa protegeram-nas dos inimigos, as fendas seteiras e balesteiros por onde se atiravam pedras e chumbo derretido impedindo as investidas dos assaltantes.

Os anos passaram, e as muralhas permaneceram mudas e estáticas, presenciando nos tempos de hoje as festas de música e reconstituições de torneios medievais, com uma grande veracidade não só nas vestimentas como no ambiente envolvente.

Após a confissão das muralhas, abandonei-as e dirigi-me até à Ville Basse, do outro lado da velha ponte construída no século XIV.

Atravessei o rio Aude, e tentei perscrutar as histórias que tinha para me contar, enquanto atravessa sinuosos vales.

No centro da cidade ainda floresce na velha Pace Carnot, o mercado. Alguns vendedores retrocederam à época medieval e apresentam-se assim vestidos.

Vasos floridos espreitam pelos umbrais das janelas, com uma visão privilegiada sobre o rio que corre manso lá em baixo.

Alguns peixes navegam à babugem, como se estivessem espantados com a aparência do lugar, quem sabe colocando em causa um eventual regresso ao passado.

O dia caiu, e com ele os tons dourados que cobriam as muralhas também se dissiparam aos poucos, até escurecerem por completo.

De noite as muralhas engalanaram-se com focos de luz indirectos, criando uma envolvente cénica de um ambiente arrebatador.

O silêncio da manhã, era somente perturbado pelo som dos meus passos apressados, que ecoavam na calçada por entre as muralhas, levando-me num rumo certo até à boulangerie do dia anterior.

Sentei-me num banco, perdido numa pequena praça, e deliciei-me com a baguete quente que derretia a manteiga que nela tinha barrado. O seu aroma emanava no ar uma nuvem invisível, que atraía até mim qualquer olhar, de quem ali passasse.

Hum! Que delicia!

O sol tentava romper e iluminar as ruas e praças, pontes e vielas, torres e muralhas.

Eu continuava sentado, a gozar o aroma do pão acabadinho de fazer, que a boulangerie oferecia o privilégio de poder desfrutar.

Crianças e adultos, turistas e locais, de bicicleta ou a pé, quase todos em romaria entravam e traziam a baguete estaladiça debaixo do braço, sabendo do prazer que esta lhes iria proporcionar.

Vista panorâmica da cidade de Carcassonne.
© Steve Collis ( CC BY 2.0 )

Uma senhora de meia-idade saiu pela mesma porta, com a invariável baguete debaixo do braço, sentou-se na bicicleta e partiu. Poucos metros mais adiante um cachorro atravessou-se à frente da sua roda dianteira, e o inesperado acontecimento fê-la desequilibrar-se e cair no chão.

Levantei-me rapidamente e corri em seu auxílio. Os óculos tinham-se perdido no chão, e apesar de ter uma esfoladela nos joelhos e estar um pouco queixosa, encontrava-se visivelmente bem-disposta, procurando saber se estava tudo bem com o cão.

Ajudei-a a levar a bicicleta até casa que não ficava muito distante dali, e lá chegados convidou-me a entrar.

Preparou o pequeno-almoço e partilhou-o comigo. Para barrar na baguete uma inumerável quantidade de compotas, uma torta de frutos silvestres de comer e chorar por mais, e um cacau quente como só as avós sabem fazer.

A senhora Foix andava pela casa dos setenta, era viúva e tinha oito netos espalhados por toda a França. Cada um para seu lado tal como as torres da muralha, como gostava de dizer abrindo os braços num movimento amplo, e com os olhos marejados.

Contou-me algumas histórias de família, e outras da cidade de Carcassonne que adorava. Queria viver aqui até ao último dos seus dias.

“Já conhecia alguma dessas histórias, as muralhas contaram-me”.

“As muralhas não falam, meu filho”, contrapôs com um sorriso genuíno, como se pensasse que eu estivesse a brincar.

“Sério senhora Foix, segredaram-me ao ouvido”.

“Elas sabem tudo, mas guardam o seus segredos em silêncio”, e cruzou o polegar nos lábios, como se simbolizasse a mudez.

Despedi-me da senhora Foix, e agradeci-lhe do fundo do coração o saboroso pequeno-almoço por si preparado, e perdi-me entre as muralhas.

Encostei-me a elas, e acariciei-as com as minhas mãos, caminhando novamente a seu lado.

Bem sei que as muralhas não falam senhora Foix, mas que me contaram os seus segredos, lá isso contaram.