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    Categories: Crónicas de Viagem

Os cantos de Calcutá

A viagem começa por um passeio no rio Hooghly ou “Ugly”, segundo um censo depreciativo. Um afluente esotérico do Ganges, de caudal crespo e amplas margens — comprar as gravuras de Samir Biswas é uma forma de trazer na bagagem a alma de Calcutá vista do rio. A cidade menos religiosa do país (e menos insana conforme asseguram os comunistas de champanhe) leva todos os dias a banhos purificantes mais de dois milhões de indianos, além de algumas centenas de milhar de estrangeiros à procura de um spa samadhi.

Nada se compara em asseios místicos a Varanasi onde o rio submerge com as enchentes de hindus e forasteiros frenéticos em busca do bálsamo espiritual. Porém, da balsa onde navego o ritual iniciático não deixa de ser pungente e sincero, uma amostra feliz da simbologia religiosa deste povo estóico e admirável. Na valsa lenta de cabotagem pelo Hooghly vêem-se, de um lado, legiões de homens desnudados e esquálidos, e, na margem oposta, mulheres esguias e belas como juncos adejados pelo vento, de saris arreados pela cintura, ambos mergulhados em minuciosas purgas e aspersões capilares. Estão separados por um Braço de rio e ensaboam-se com vig, o sabonete Lux para a entrada perfumada no Além.

Depois, sobem a enseada reluzentes e incensados, ajeitam o sari molhado e os cueiros e vão às suas vidas, rua fora, a mascar tabaco e a pentear os cabelo untados de águas do Ugly. Sussurro ao meu botão esquerdo: se Deus, ou Khrishna, me desse garantias do Ph era capaz de dar um cacholada para aliviar os ardores do caril de véspera e me livrar de um pensamento licencioso recidivo com o sari folgado de Neha Dhupia, a estrela mais luminescente da andrómeda de Bollywood. Acima da linha de água, recuadas um torrão de jardim, estão as velhas mansões decrépitas dos banians, os mercadores ancestrais de Calcutá.

No coração do rio há barcas infernais de pescadores de safio, distantes das barcas lânguidas de amantes ocidentais que navegam governadas por gondoleiros de cuecas rente às praias inventadas. Ambos remam de pé, à maneira romana dos forçados das galés, agrilhoados a um destino. Na ponte segue um velório, e o cangalheiro de túnica branca, sacode as cinzas no rio enquanto o corso fúnebre arenga um mantra e aplaude a futura viagem no Hades.

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  • Sempre que "leio" Tiago Salazar , leio o sonho e a viagem ..leio e bebo as palavras que me precedem os pensamentos. É a palavra descorada, o pormenor da vida , o detalhe requintado deste escritor no uso das palavras . Também o seu (bom) humor, a sua peculiar forma de ver, sentir, simplificar e realizar a vida para além do óbvio e .....da própria vida. Não posso falar muito mais do que "bebo" de uma assentada só ao ler os seus livros, os seus contos, as suas crónicas e até ao ouvi-lo nas suas apresentações de lançamento. Fica pois a minha gratidão ao escritor e ao ser humano que ele é num só, deixando por isso transcrito o seu lado MAIOR, o de ser ....verdadeiro. GRATA. Carla Melo