“Passa-me essa pá, e alumia esta zona”.
Enquanto escavava sob o esforço de várias horas acumuladas, os seus ombros e braços iam dando de si, estalando após cada movimento.
Outro elemento do grupo tomou a dianteira, com uma picareta em punho, desferindo golpes firmes no chão duro, como se descarregasse toda a raiva que residia dentro de si.
O frio entranhava-se no corpo, enquanto a humidade escorria pelas paredes do túnel, como lágrimas tristes de alguém que se sente prisioneiro.
“Brrrrrrr está um frio tremendo”, comentou um deles.
“Vai para a picareta um bocadinho, que aqueces num instante”, contrapôs Noffke esboçando um sorriso cansado, que quase não lhe permitiu abrir os lábios.
De estocada em estocada, as horas passaram e os dias foram ficando para trás, tal como as semanas e os meses. As paredes duras foram desmoronando, a terra foi retirada com pás, e um longo túnel foi construído, com o objectivo de transpor um obstáculo impossível de passar, alguns metros acima das suas cabeças, no solo.
Segundo as suas previsões necessitariam apenas de mais uma semana de trabalho árduo. A esperança era a última a morrer.
Um grupo de amigos tinha decidido transpor o muro pelo subsolo, liderado por Siegfries Noffke que apenas queria passar da Alemanha Democrática para a Federal, para ir buscar a mulher e o filho que se encontravam do lado errado do muro.
“Que barulho foi aquele?”, perguntou alguém do grupo completamente enegrecido na cara e mãos pela terra escura.
“Estás a sonhar! Continua a escavar, todo o tempo é precioso”, retorquiu Noffke enquanto acartava pás cheias de terra até a cima.
O barulho voltou a ouvir-se, agora com mais intensidade, para escassos segundos depois ocorrer um aluimento de terras, trazendo com elas alguns jovens estudantes, que também escavavam uma via subterrânea bem próximo.
As sirenes tocaram, e de súbito o local estava rodeado de autoridades fronteiriças de metralhadora em punho, prontos para o que desse e viesse.
Noffke apenas procurou chegar à superfície para poder respirar. Com o corpo coberto de terra, protegeu os olhos da luminosidade do sol, para que a vista se adaptasse, no entanto foi desferido um tiro que ecoou pelas ruas desertas, fazendo-o tombar desamparado e sem vida na calçada.
Um traço de sangue escorreu até se tornar numa poça maior, que continuava a brotar da sua cabeça, enquanto os restantes elementos saíam do túnel de mãos atrás da cabeça, em sinal de rendição.
Todos os elementos do grupo foram condenados a prisão perpétua, sendo privados de uma liberdade que já não tinham.
Esta história foi-me contada junto ao Checkpoint Charlie, um posto fronteiriço para estrangeiros entre Berlim Este e Oeste, funcionando de1961 a1990. Representou o símbolo da liberdade e separação de muitos Alemães que tentaram fugir do comunismo Soviético.
Hoje resta apenas a torre de vigilância que alberga o museu “Haus am Checkpoint Charlie”, que retrata aos visitantes o que se passou no muro durante a guerra-fria.
No distrito de Mitte onde jazia o muro, há hoje um vazio deixado pela sua ausência, tantas vezes clausura. O seu desaparecimento abriu uma porta para a liberdade, dando largas à cidade, abrindo-a para o mundo como se fosse uma gigantesca aldeia.
Um dos espaços mais nobres desta zona da cidade é o Memorial dos Judeus assassinados. Projectado de forma a transmitir a história trágica dos Judeus que morreram no Holocausto, é um complexo de imaginação arquitectónica soberbo. A sua disposição em ziguezague evoca a estrela de David partida. As paredes revestidas a aço e vidro levam-nos por corredores até à torre do Holocausto, sem janelas. Simplesmente arrepiante.
Com pele da galinha nos braços, imaginei as atrocidades que aqui se passaram, sendo impossível ficar indiferente.
Por outro lado, observei as pessoas que caminhavam na rua, com liberdade de expressão, de vestir e de sentir, sem censuras.
Centenas de pessoas cruzaram-se comigo, todas diferentes e no entanto todas iguais. Punks, góticos, clássicos, extravagantes, formais e informais, todos se passeavam pelas ruas indiferentes ao que os rodeava, sem conversas nem trocas de olhares.
Decidi ter uma perspectiva diferente da cidade, quem sabe vê-la de cima.
Subi à torre da televisão na Alexanderplatz, a construção mais alta da cidade com 365 metrosde altura. A visão daqui é ampla. Berlim espraia-se a perder de vista numa largueza urbana, em tempos dividida por um muro que serpenteava por entre bairros e ruas, jardins e casas
Para me proteger do frio, sento-me a tomar algo quente no café rotativo. Observo calmamente a panorâmica da cidade durante cerca de trinta minutos, o tempo que demora a dar a volta completa.
Uma majestosa obra neoclássica espelha o símbolo da cidade, a “Porta de Brandeburgo”. Uma escultura de seis metros de altura representa a quadriga romana, conduzida pela Deusa Vitória. A imagem de marca de Berlim, aquela que se vê em todos os postais, muito mais deslumbrante ao vivo. Foi neste local que os Berlinenses se juntaram para celebrar a unificação em 1989.
Uma multidão ciranda pelas ruas, sem destino num frenesim constante. A cidade transpira vida num corrupio inquieto.
Palmilhei até “Hunter den Linden” ali próximo, uma das ruas mais famosas da cidade pelas suas fachadas barrocas. Contemplei-a por algum tempo, deixando-me por fim arrastar por uma pequena multidão de Berlinenses, que vagueavam sem rumo nem direcção. Com tempo para gastar, quis saber para onde se dirigiam, num final de tarde.
No meio do caos urbano uma lufada de ar fresco. Teiergarten, é um parque paisagístico dos mais belos que já vi. Outrora uma propriedade de caça real, foi transformado num parque com lagos e ribeiros em 1818. A Segunda Guerra Mundial danificou-o muito, tendo sido recuperado posteriormente. As suas avenidas são ladeadas de estátuas, estando dispostas na Avenida Triunfal estátuas de governantes e estadistas.
Algumas pessoas lêem sentadas em bancos de jardim, enquanto outras treinam sozinhas. Outras há que simplesmente olham o vazio à sua frente, não sei se relembrando o passado ou projectando o futuro.
Gentes de várias culturas e cores, diferentes línguas e vestes, continuam a cruzar-se comigo.
Sentando num banco de jardim, apenas observo esta multidão imutável que simplesmente deambula, só eles sabem para onde.
Ao mesmo tempo parecem-me tristes, não sei se pelo passado recente ou pela vida quotidiana, mas andam cabisbaixos, sem companhia, com poucas conversas, e os seus olhares raramente se cruzam com o meu.
O muro dividiu-os, despertando medos e traumas difíceis de ultrapassar. O muro caiu, e hoje a liberdade impera, os anos passaram e o ventre deu à luz uma multidão solitária.