Andei, andei, andei…

Olhei para todos os lados, percorri o mesmo caminho vezes sem conta, ora para um lado ora para outro.

Parei, coloquei-me de cócoras enquanto experimentava a chave do cadeado, e nada.

Um pouco mais à frente tentava novamente, sem que houvesse qualquer sinal de que a chave que possuía fosse gémea do cadeado que tentava abrir.

Senti-me um príncipe encantado, à procura da Cinderela que teimava em não aparecer. O sapato que tinha na mão, teimava em não pertencer a nenhum pé delicado.

Passados trinta minutos, desisti simplesmente, de encontrar a bicicleta que tinha alugado há algumas horas atrás. Pareciam-me todas demasiado parecidas. Pretas, grandes, de rodas altas e com um aspecto de pasteleira, envergando um cesto à frente. Estacionadas num enorme parque, eram mais de mil, todas gémeas, todas demasiado parecidas.

Devido ao roubo de bicicletas ser muito frequente, os habitantes optam por ter bicicletas velhas para se fazerem deslocar, de modo a que não sejam uma tentação para os oportunistas.

Abandonei o parque e prossegui a pé, pelas ruas da cidade que flutua sobre uma extensa rede de cento e sessenta e cinco canais, que rasgam a cidade.

Esta tem uma longa relação com a água. No século XIII os pescadores que se instalaram na foz do rio Amstel, construíram diques para proteger as suas aldeias das inundações, escavando depois canais de drenagem para tornar cultiváveis os terrenos pantanosos.

Os canais proporcionavam uma excelente rede de transportes de mercadorias, fazendo com que a cidade se desenvolvesse bastante a partir do século XV.

Passados seis séculos, os canais continuam a ser atravessados por turistas em pequenos cruzeiros. Os barcos com cobertura em vidro, permitem uma visibilidade perfeita para que a cidade possa ser apreciada a partir da água, navegando calmamente por entre os edifícios históricos, as principais ruas da cidade, e as bicicletas que se cruzam num vaivém constante.

Trim-Trim!

Mal tive tempo de me desviar da pista de bicicletas, quando estava distraído a olhar para um barco que navegava lotado de turistas, e me deparo com o toque de uma campainha.

Quando olho, vejo a aproximar-se velozmente uma bicicleta guiada por uma Holandesa. Em breves segundos apenas tive tempo de colocar os dois pés fora da zona demarcada como pista, e sentir a bicicleta passar rasante por mim, sem qualquer indício de abrandamento.

Aliviado, pensei que ainda não estava completamente habituado a ter de lidar com os ciclistas, que passavam por mim a todo o momento, a mais de trinta à hora a fazer tangentes no passeio.

Estava na hora do meu ritual diário.

Enquanto o fim da tarde se aproximava, sentei-me numa das muitas esplanadas, bebi várias cervejas frescas enquanto avistava o Amstel.

Jovens entusiastas, também bebiam em mesas vizinhas, outros fumavam, alguns tocavam viola desafinadamente, enquanto outros entoavam algumas notas.

Outros haviam, que simplesmente liam um livro, tentando despreocupadamente captar os últimos raios de sol do dia.

Begijnhof em Amesterdão
Begijnhof foi fundado em 1346, para alojar as mulheres que sem ingressarem completamente na igreja dedicavam a sua vida a Deus.
© Agostinho Mendes

Cruzo ruas em que os cafés de tectos baixos, com luzes suaves, estão envoltos em nuvens de fumo. Nas Coffeshops a venda e o consumo de cannabis é tolerado pelas autoridades apesar de ilegal, desde que seja feito de forma discreta.

A noite cai, e os candeeiros da cidade começam a acender-se quase um a um, lentamente, acabando por iluminar toda a cidade aos poucos.

Um homem sentado num sofá, iluminado pela luz de um candeeiro de pé, folheava de tempos a tempos um livro que parecia degustar com prazer. A esposa trouxe-lhe uma chávena de café fumegante, posando-a numa mesa paralela, afastando-se depois. Misturou-lhe açúcar, e mexeu calmamente com a colher, sem desviar os olhos da leitura. Levou a chávena à boca, tomou o café de um só gole, e continuou a leitura sem que nada o pudesse interromper.

Estagnado em frente ao prédio, observava atentamente a vida de uma família no seu momento de lazer. As janelas assemelham-se a pequenas televisões, transmitindo diferentes ambientes, várias intimidades. As luzes interiores projectam para a rua uma espécie de filme, que as inexistentes cortinas se coíbem de esconder, fixando-nos aos quadrados de luz como se fossemos verdadeiros espectadores.

“Que vergonha”, pensei eu para comigo, “a olhar para casa das pessoas”. Apesar de ser um gesto irreflectido, é uma verdadeira tentação.

O céu enegreceu-se por completo. As pontes iluminadas com lâmpadas reflectiam nos canais os seus contornos, espelhando uma imagem perfeita onde se confunde o real e o reflexo.