“Não vás para a Abecázia, que é perigoso! Espancam-te e roubam-te, não sairás de lá inteiro!” avisaram-me muitas vozes na Geórgia, mas a curiosidade falou mais alto e quando dou por mim estava já em Zugdidi, na fronteira com a auto proclamada república da Abecázia, o território que se desvinculou do poder de Tbilisi após o conflito de 1992-93, independência essa consolidada com a invasão do exército russo na guerra da Geórgia no Verão de 2008.
Com um formulário que tinha obtido no Ministério dos Negócios Estrangeiros Abecázio no bolso, tinha a entrada garantida. Faltava agora o resto. Preencho as burocracias necessárias no posto fronteiriço para deixar a Geórgia e entrar na república separatista apenas reconhecida por Moscovo e poucos mais países. Recordo as imagens que as cadeias de televisão internacionais mostraram do exército russo nesse pequeno edifício cor-de-rosa a hastear a sua bandeira nacional. A estrada está pejada de blocos de betão, estrategicamente colocados prevendo uma futura incursão inimiga. Bem perto do rio Engur, a fronteira natural, numa pequena caserna militar ondulam duas bandeiras, uma da Geórgia e outra da União Europeia, numa clara alusão ao seu suposto protector. O meu lado esquerdo, um enorme revolver apontando na direção do inimigo marca a sua posição, apesar do cano estar propositadamente inutilizado com um nó cego. Supõe-se que os votos sejam de paz.
A ponte obriga a um caminhar interminável. Carroças com passageiros andam num perpétuo vai-e-vem com passageiros a bordo. Os raios de luz que furam as nuvens fazem brilhar os reflexos do arame farpado do outro lado da margem. Uma placa a dizer “República da Abecázia” em inglês, russo e Abecázio dá-me as boas vindas, antes de entrar num túnel coberto de rede, como se fosse uma jaula, onde teria de apresentar o valioso papel. Os soldados que me inspecionam são russos. Os veículos militares também. Olham para o passaporte, exclamam com um sorriso tímido “Ronaldo!” e deixam-me passar. Parte das fotos que aí fiz foram verificadas e tive de apagar uma boa parte delas. Mas tinha finalmente entrado.
A estrada até Sucumi, a capital, está pejada de edifícios bombardeados (sobretudo no sul, onde os combates foram mais encarniçados) e de monumentos aos heróis da guerra de 1992-93, mas a chegada ao destino mostra a injeção de capital que o governo russo aqui investe, como se de um Plano Marshall eslavo se tratasse. Abunda a destruição, mas a paredes meias já se vislumbra fausto à moda russa. Esta cidade, que era a estância balnear da elite soviética, volta a reclamar essa posição. As margens do mar Negro começam a ser reocupadas por praias e hotéis caros para consumo russo, tudo pago em rublos, a moeda corrente. Os preços da restauração e do alojamento não são os mais acessíveis para quem vem habituado ao custo de vida do país vizinho.
O acaso ditou que passasse junto ao edifício que outrora era a sede do governo soviético local, hoje um colossal monte de escombros, naquela que foi a vigésima edição da comemoração da vitória na guerra contra a Geórgia. Na enorme praça em frente, uma parada militar com os vários ramos das forças armadas vai formosa, mas não segura. Salva-os o “grande irmão” russo para algum momento de aperto, mas isso tem um preço a pagar. Junto com Marysia, uma colega polaca, fomos os únicos estrangeiros a documentar a cerimónia, fotografando-a discretamente. Mas a Abecázia não se esgota no tema da guerra. Apesar da ligação ferroviária com a Geórgia ser agora inexistente (as tropas de Tbilisi levantaram os carris para aproveitar o metal no esforço de guerra), parte regularmente da estação de Sucumi um comboio com destino a Moscovo. O edifício, degradado, mantém ainda o charme de uma época esplendorosa. Mais a norte, Novy Afon concentra num espaço tão pequeno um património tão singular. Daí ao Lago de Ritsa, onde Estaline tinha uma das suas casas de férias preferidas, será obrigatório parar para respirar o ar puro da montanha e provar o mel que por aí se faz, contemplando algumas espécies de flora endémicas. E será imperdível Gagra, já a um passo de Sochi, assumidamente russa, onde decorreram os Jogos Olímpicos de Inverno. Mas o melhor ainda são as pessoas, gente humilde e sofrida, mas com um coração e hospitalidade tão singulares. Já no regresso à fronteira, no sul, em Gali, a zona tida como mais perigosa pelo banditismo, um homem convida-me a entrar em sua casa. Coloquei o receio de parte e aí passei algumas horas até se acabar o pão, queijo, fruta fresca, o café e a vodka que ele foi num instante comprar ao supermercado. Foi este todo o mal que me puderam fazer.
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