Verona é uma feia bonita. Ao contrário do que é habitual em Itália — onde, seja prado toscano ou cidade antiga, se espera um elogio do belo, da estética, do medieval bem preservado e também do moderno, do chique, do sublime — Verona sofre do mesmo mal urbanístico que outras cidades modernas reféns de construtores civis inauditos. Ora, chegando a Verona em companhia de Fiats e Ferraris, num alegre concílio democrático de estrada, dou de caras com uma paisagem familiar ao franco Portugal, uma região demarcada de rotundas e subúrbios incensados a estuário podre.
Na bomba de gasolina o senhor Pulpo não quer enfiar o barrete ao estrangeiro incauto nem arrebanhar comissão e manda-me para as periferias, “onde se está como o menino nas palhinhas”. Escreve uma morada a lápis num papel ratado e confia-me aquilo como se fosse a súmula de um golpe de Estado para depor Berlusconi. “Tome lá, e não diga que vai daqui. Se puder não diga a ninguém”, recomenda, passando a nota de uma villa etrusca na terrinha de Sirmione, no lago de Garda, onde só ficam os simpatizantes de Garibaldi, Giordano Bruno ou Galileu Galilei (e não me perguntem porquê).
Três quartos de hora mais tarde, a rodar sossegadamente por estradas sombrias, estreitas e um perfumado vinhedo, eis-me longe de qualquer amostra de progresso e diante da Villa Pioppi. Um solar junto ao lago e com uma silhueta palaciana. Não sei se de comoção, se do Amarone que levava bebido na companhia do senhor Pulpo, naquele instante parece-me que a casa vai zarpar para dentro do lago, o que juro de imediato ser a primeira coisa que farei na manhã seguinte, das traves do bote ancorado a dar e dar junto ao cais.
A vista de fora é mais luminosa que a dos quartos mas não deixa de estar tudo nos conformes, e as janelas e portadas de salão de baile a desvendarem o lago, arrumam de vez os impropérios e sinapismos que me atormentavam a alma veronesa. Assento praça no primeiro andar, o único com uma varanda de balcão para o lago onde Romeu se banhou em pelota à vista impudica de Julieta.
Ali estarei duas tardes memoráveis a saltitar entre as cadeiras do jardim e as traves do ancoradouro para melhor assistir aos festivais acrobáticos das andorinhas. Mais tarde, enrolado numa manta cardada e de pés à braseira, brindo ao senhor Pulpo e à varanda do aposento que me calhou em sorte. Da janela, a vista é apenas perturbada por uma falange de juncos, patos em aulas de voo e pescadores eremitas. Não há quem me tire daqui nos próximos dias, nem a borboleta de Puccini.
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