O dia estava chuvoso, de uma chuva miudinha e intermitente que não cessara de cair durante todo o dia em Bruxelas. As nuvens cinzentas não paravam de borrifar as ruas, querendo deixar a imagem acinzentada que a maior parte das pessoas têm da cidade.
“Bruxelas? Não vais gostar!” foi uma das frases que mais ouvi, quando em conversa manifestei o meu interesse em conhecer a cidade, perante amigos e conhecidos.
Observei o céu, uma e outra vez, e não dava sinais de querer abrir. Tudo à minha volta parecia demasiado cinzento, para que as perspectivas de ver um único raio de sol fossem boas.
Vesti o impermeável e coloquei um rolo de slides na máquina fotográfica.
Saí para a rua, sob uma chuva copiosa. Os borrifos tinham dado lugar a verdadeiros lençóis de água, que mais pareciam alguidares cheios despejados lá de cima.
Qual pintor, como se me tivesse munido de aguarelas, fui em busca da cidade na tentativa de a descobrir, e conseguir colori-la, pelo menos ao meu olhar.
Interiorizei que iria desmistificar a ideia da metrópole burocrática da Europa, sob o signo da cidade enfadonha.
Alheei-me de todas as referências, melhores ou piores que tinham chegado até mim, e quis descobri-la com os meus próprios olhos, senti-la com todos os meus sentidos.
O hotel situava-se bem no meio da cidade, em pleno centro histórico. Imiscuí-me por ruas e ruelas estreitas, até deparar-me com uma grandiosa praça.
Prostrado perante tamanha grandeza, procurei todas as cores por entre as minhas aguarelas para poder defini-la.
Se tivesse que pintar a Grand Place, todas as minhas aguarelas seriam insignificantes, e nem a maior colecção de cores de qualquer catálogo de tintas, seria suficiente para a transcrever de forma realista.
A cidade “cinzentona” apresentava-se ali, perante mim, majestosa, multicolorida e multicultural.
A Grand Place situa-se no coração do centro histórico, e é uma das praças mais bonitas que alguma vez tive oportunidade de presenciar.
Logo pela manhã o mercado de flores é uma verdadeira tentação. Bancas repletas de flores até cima, onde as vendedoras apregoam a mercadoria fresca, tal como a manhã.
O conjunto arquitectónico é simplesmente soberbo. A praça graciosamente pavimentada está rodeada de edifícios monumentais góticos, que encantam e me deixaram sem palavras, nem cores suficientes para descrever.
O Hotel de Ville é o mais belo edifício cívico do país. O imponente edifício da Câmara, com uma torre de 96 metros de altura, foi construído em 1402.
Do outro lado da praça a Maison du Roi, outrora residência dos monarcas Espanhóis, hoje Museu da cidade, exibe quadros do século XVI, tapeçarias e os quatrocentos trajes do Manneken Pis.
Toda a praça está recheada de elegantes esplanadas e de acolhedores cafés que funcionam nos pisos térreos destes edifícios. A maior parte deles tem mobiliário de madeira e são tão confortáveis que não resisti à tentação de beber uma bebida quente no seu interior. Enquanto o fogo bruxuleante crepitava na lareira, eu deslumbrava-me com o cenário sedutor da praça.
Depois perdi-me pela teia de ruelas, onde se realizam vários mercados, como o Mercado das Ervas e o Mercado dos Arenques.
Um grupo de japoneses caminhava com passinhos pequenos e sincronizados, apontando as suas câmaras fotográficas a tudo o que mexia, disparando flashes por tudo quanto era sitio. Eram tantos que pareciam relâmpagos irrompendo pelo meio da negrura do céu.
Um molho de gente olhava para algo que não conseguia perceber o quê.
Empurrões de um lado e de outro, enquanto os flashes disparavam sem cessar, tento olhar por cima de um ombro, mas dezenas de cabeças interpunham-se no meu raio de visão.
Por fim acabou a explicação nipónica e, finalmente, a “pequena” multidão afastou-se.
Diante de mim, um miúdo urinava descontraidamente, com um ar traquina.
Manneken Pis, que é uma pequena estátua de bronze com trinta centímetros de altura, de um rapazinho a fazer chichi para um pequeno tanque, é a imagem típica de Bruxelas.
Conta uma lenda que a estátua é uma homenagem a uma criança que salvou a cidade de um incêndio, ao apagar a mecha de uma bomba destinada à Grand Place.
A chuva continua a cair. Sigo a pé até ao Palácio da Justiça.
Este domina o horizonte de Bruxelas, podendo ser visto de qualquer ponto alto da cidade. Ocupa uma área maior do que a Basílica de São Pedro, em Roma, sendo um dos edifícios mais impressionantes do século XIX. É aqui que funcionam os tribunais da cidade.
Muito próximo o Palácio D’Egmont, hoje pertencente ao Ministério dos negócios estrangeiros, os jardins circundantes são deslumbrantes.
Esta mansão ducal do século XVIII tem o nome de um conde Flamengo, executado por defender os direitos civis dos seus compatriotas.
A chuva continuava a cair, tal como a noite que caiu repentinamente sem avisar, pintando em escassos minutos de negro o céu até há pouco cinzento-escuro.
A Grand Place de noite ainda tem mais encanto. Quase irreal, parece uma encenação.
Olho cada canto, cada edifício, cada candeeiro, cada café.
Tal como todo o dia, continua a chuviscar. As pessoas cruzam-se comigo de gabardina e chapéus-de-chuva abertos, mas mesmo assim não consigo ver a cidade cinzenta.
Escolho ao acaso um dos muitos restaurantes e, enquanto degusto uma deliciosa refeição ao som de jazz, espreito à minha volta, observando os sorrisos coloridos nas mesas que me circundam.
Um raio de sol entra pelo quarto adentro, por uma fresta do cortinado mal fechado.
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