O túnel era demasiado escuro e húmido. Palmilhava sentindo os pés molhados sem saber o que pisava, apenas sentindo uma superfície mole, que suspeitava ser lama. Acendi a luz que tinha presa ao capacete, que não iluminava mais de cinco, seis metros numa escuridão total. No labirinto estreito, com não mais de dois metros de largura, o ar era escasso e quase irrespirável. As paredes de pedra pareciam cascatas, a água escorria por elas como se fosse um rio a correr para o mar.
Curvado, num ambiente completamente claustrofóbico, continuei a percorrer o túnel até encontrar uma “câmara-de-ar” onde, para além de possibilitar cruzar-nos com quem circulasse em sentido inverso, permitia um pouco mais de ar aos pulmões que permaneciam enclausurados. Senti-me como uma verdadeira ratazana no esgoto.
Encontrava-me nos túneis das minas de prata de Kutná Hora. Eram escuras como a noite, apesar de já serem dez horas da manhã.
As velhas minas foram transformadas em museu, por um poço que se enfia num túnel, permanecendo impenetrável a qualquer feixe de luz solar.
Milhares de homens trabalharam nestas minas no decorrer do século XIII, criando as raízes para que a cidade construída por cima das suas cabeças fosse outrora rica e grandiosa. Pagaram no entanto esse esforço com as próprias vidas. A vida dura que levavam, esventrando as entranhas da terra com picaretas, fez com que a esperança de vida para um mineiro desta região não ultrapassasse os 35 anos.
A cidade de Kutná Hora nasceu como uma pequena comunidade mineira na segunda metade do século XIII, quando foram descobertos ricos filões de prata. O rei tomou conta das licenças das minas, e a cidade tornou-se a segunda mais importante da Boémia. No século XIV eram extraídas cinco a seis toneladas de prata, permitindo que se embelezasse através de construções capitalizadas com o dinheiro das minas.
Subo ao nível do chão. Os olhos ardem-me durante breves minutos, até se adaptarem à luminosidade do dia. Agora cá em cima tenho uma noção ínfima da dureza do trabalho dos mineiros, e das condições desumanas que estiveram na origem de todo este esplendor.
No coração da cidade, na praça em Palackého Namestri, crianças numa correria constante brincam à apanhada, envoltas em edifícios exuberantes de arquitectura barroca.
Nas esplanadas sentam-se jovens esfusiantes, que talvez não façam a mínima ideia do valor histórico da cidade, nem do esforço dos seus antepassados para a construírem.
Recupero o oxigénio perdido no subsolo, sentado numa agradável esplanada muito movimentada por jovens estudantes que irradiavam alegria pelo ar, tornando-o mais leve.
O sol está a pique, mas sigo até ao Pátio Italiano. Construído no século XIV sob a forma de um magnífico palácio, sob a qual se encontra a tesouraria real, destacam-se várias salas de recepção, a Capela de São Venceslau e São Ladislau. Foi assim chamado por especialistas florentinos que foram empregados para fazerem a cunhagem das moedas.
As ruas encontram-se calmas, tirando um grupo ou outro de jovens que circulam, mas dá a sensação de se estar num ambiente completamente rural, até pelo cheiro do pólen que paira pelo ar.
Chego à Catedral de Santa Bárbara, com o telhado de três flechas maciças em forma de tenda que se erguem acima da floresta, tendo o céu azul como limite. O exterior da catedral é um trabalho perfeito em termos esculturais, tendo sido efectuado por mestres canteiros que na época se ofereceram voluntariamente. A construção da mesma foi financiada por donativos de mineiros e artilheiros.
À minha direita a igreja de Sv. Jakub. O mais velho templo da cidade, com uma torre muito alta, como que querendo competir com o telhado da Catedral.
O céu de um azul brilhante é rasgado pelo voo de um pássaro livre que voa sem destino.
Os raios do sol iluminam montes e vales, praças e palácios, com a intensidade do meio-dia, fazendo com que o chão engula as sombras, de tão a pique que está.
Aproxima-se de mim um homem, no seu andar vagaroso, que aparentava ter uns sessenta anos e pede-me lume.
Respondo-lhe que não fumo.
”Gostas da minha cidade?”
”Sim, é muito bonita”.
“Sabes? Foi considerada património mundial da Unesco em 1995.”
”Já tinha lido. Tive curiosidade em a conhecer. Valeu a pena.”
”Já foste às minas? Conheço-as como a palma das minhas mãos. Cada sombra, cada silêncio, é como se fosse uma estrada infinita, que esconde segredos a cada canto.”
”A mim pareceu-me demasiado escura e húmida”, constatei.
”É muito mais do que isso, é um mundo debaixo desta cidade maravilhosa. É a génese de tudo o que vês cá em cima”, continuava o senhor entusiasmado com um brilho nos olhos que aumentava a cada palavra que desferia.
”Quando estiver em Portugal, recomendarei Kutná Hora a todos os meus amigos. Sinceramente saio daqui encantado”.
“Sim, faz isso, meu rapaz. A cidade, mesmo sem a prata, vai continuar a brilhar todos os dias”, disse o senhor com os olhos mais brilhantes que o sol, acreditando piamente no que acabara de afirmar.
Despedimo-nos, e cada um seguiu a sua viagem.
Enquanto percorria a rua, olhei duas a três vezes para trás. Apesar de ver o homem apenas de costas, ainda conseguia imaginar o brilho dos seus olhos quando falava da cidade.
Com toda a certeza, os seus olhos conseguiam iluminar a estrada infinita no subsolo. Cada sombra, cada silêncio, e interpretar os mistérios e segredos escondidos nas entranhas da terra.
Afinal a génese de tudo.
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