Quando em 2001 comprei uma bicicleta – que ainda mantenho –, as pretensões eram poucas. Eu queria de facto recomeçar a praticar desporto, mas no fundo pensei que na melhor das hipóteses a bicicleta serviria apenas para dar umas voltas pelo perímetro da praia, no convidativo pôr-do-sol de Verão, ou então, como eu dizia em tom de brincadeira…”para ir comprar pão pelo romper da manhã!”. Mas contrariamente ao que no íntimo julgava vir a acontecer, a bicicleta não se tornou apenas num volume inerte a espoliar um canto da garagem.
Inicialmente pensei em “andar de bicicleta” – na altura nem lhe chamava praticar BTT – apenas pela componente ligada à actividade física e o seu benefício para a saúde. Praticar desporto nos dias de hoje é para muitos de nós imperativo, face ao crescente e quase incontornável estado de sedentarismo a que estamos sujeitos.
Com a crescente evolução tecnológica que nos permite fazer quase tudo, durante todo o dia, num confinado espaço de um metro quadrado sem verter uma gota de suor, o “poder” está afinal na ponta do dedo indicador e num simples click do rato. Não estão longe os dias em que o binómio simbólico de identificação da acção do trabalho estava associado em todo o mundo à foice e martelo. Não obstante ser uma referência ideológico-partidária, estes dois “periféricos” de trabalho parecem-me proporcionar uma actividade aeróbia e de exigência motora substancialmente superiores aos actuais Rato e Teclado.
No início do século passado, muitos dos seguidores das ideias defendidas sob o vermelho da foice-e-martelo ainda fizeram a chamada “Grande Marcha”, mas hoje em dia, boa parte do “exército” do rato e do teclado não parece ir em grandes marchas. Talvez a noite de Santo António ou S. João possam ser excepções, pois os apossados de um ócio desmesurado, já só fazem por ir onde os rodízios da cadeira o permitirem.
Considero que comecei a praticar BTT – e não “andar de bicicleta” – a partir do momento em que descobri o “espírito” da modalidade; quando para além dos previsíveis benefícios físicos, constatei o alívio mental proporcionado pelo estreito contacto com a Natureza, revelando-se num escape ao stress do dia-a-dia. Naquela altura era nessa visão e nesse conjunto de fundamentos em que se reviam de forma generalizada os seus praticantes. E foi assim durante alguns anos. No entanto, desde há algum tempo para cá verificou-se um “boom” da prática do BTT, ou do simples uso da bicicleta numa vertente de lazer familiar: uma recente moda, que trouxe novos praticantes com uma perspectiva muito peculiar em relação às bicicletas. Perspectiva essa, que é em suma a transposição do automóvel para as bicicletas, do clássico comportamento que leva alguns indivíduos a tentarem nivelar o seu estatuto social, através da gama do automóvel que ostentam, tentando fazer dele um instrumento de afirmação pessoal, como se fosse uma extensão do ego ou até da própria virilidade.
Vejo por aí muitos pseudo-BTTistas com milhares de euros investidos em bicicletas, apenas para andarem ao Domingo de manhã, durante aquele espaço temporal em que as suas “Marias” – esposas, concubinas ou amantizadas –, não lhes reconhecendo especiais dotes culinários ou outra qualquer serventia de índole doméstica, os preferem ver pelas costas enquanto preparam o requintado almoço de Domingo, fazendo jus à velha frase feita – “não atrapalhar já é uma grande ajuda!”. Há por aí muitos recém-sedentários, de porte amplo, que por andarem em bicicletas de três mil euros, em titânio e todas “artilhadas” com acessórios feitos de polímeros reforçados com fibra de carbono, já para não falar nos materiais de aplicação aeroespacial, julgam que os vai tornar em atletas olímpicos da Grécia Clássica! Desenganem-se! Praticar BTT não é nenhum projecto aeroespacial, a bicicleta não é uma Apollo 11 e uma pequena pedalada não vai representar nenhum avanço para a humanidade.
Este tipo de atitude só vai deixar-lhes a carteira à míngua, principalmente se forem do género dos que não satisfeitos com o dinheiro gasto numa bicicleta com equipamento de série, empreendem verdadeiras demandas para as aliviar de uns magnânimos 100 gramas à custa de centenas de euros! E afinal!? O que são 100 gramas? Eu só consigo imaginar 100 gramas em fatias de fiambre na balança da charcutaria… e asseguro que é pouco. Com uma fome moderadamente esganada,garanto que viro de uma assentada o equivalente em sandes. E para terminar a comparação gastronómica, perdoe-me Sra. Paula Bobone, ainda lambo os dedos com mais afinco que um são Bernardo em missão de salvamento nos Alpes.
Após todo o investimento e engenharia de emagrecimento aplicados por estes novos Bttistas, é ridículo e inglório constatar que o fôlego, esse, continua a esgotar-se em menos de um fósforo. Afinal o gadget pode ser uma pérola da engenharia aeroespacial, mas a preparação física fica a dever muito ao rigoroso e intensivo treino de 22 meses em ambiente de micro gravidade de um Astronauta! Até porque este tipo de praticantes, por norma, são avessos aos mais subtis caprichos meteorológicos e suas consequências, como a chuva, a lama ou o calor, e com facilidade são demovidos a ficarem no aconchego da caminha ou no conforto do Sofá!
Ao contrário de mim, que continuo a privilegiar a abordagem contemplativa da modalidade e prefiro valorizar o essencial em vez do acessório, existem muitos praticantes a quem reconheço que a evolução lógica é de adquirir uma bicicleta topo de gama, dado o seu nível físico e abordagem competitiva da modalidade. Mas para quê prestar tanto culto ao gadget, quando ele é em si um meio e não um fim; um meio de quebrar a rotina e a exaustão mental do dia-a-dia? Quando estou a fazer BTT não há regras, horários, obrigações; só eu e o tempo que reservo para discorrer ao meu ritmo a natureza telúrica das paisagens seja com lama, chuva, pó ou qualquer outra adversidade primária: é como se se expandisse uma janela temporal em que o próprio tempo fica suspenso.
Há momentos e imagens únicas de locais, que a retina tratou de perpetuar na memória, como o da natureza mágica da mata da Albergaria e o seu ambiente de contos de fadas e elfos; ou de Vila Baleira à cabeceira do azul profundo oceânico, vista do Pico do Castelo na brisa do fim de tarde; ou do pôr-do-sol visto das selvagens e imponentes arribas da Costa Vicentina… São imagens e vivências pessoais tão subtis, mas que se elevam e me enchem o espírito. É uma sensação de liberdade que imagino também seja sentida por outros amantes de desportos Outdoor, como por exemplo, a que terá um surfista no tubo de uma onda confundindo-se com ela, em perfeita união, num momento Yin e Yan, de harmonia suprema e dinâmica entre todos os elementos…
Evocando um amante dos espaços abertos e da natureza em bruto, há sempre “O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir“, como disse Miguel Torga sobre o seu Douro. Portanto, preocupações extrínsecas e pomposas à parte, o que interessa é ir, sentir esse prodígio, aventurarmo-nos e fazermo-nos ao caminho deixando para trás o conforto enganador do sedentarismo. Com ou sem bicicleta topo de gama deixarmos encher os olhos de azul e horizonte! Mas como diria Immanuel Kant: “Não somos ricos por causa das coisas que possuímos, mas pelo que podemos fazer sem possuí-las”
Boas pedaladas!
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