Na província de Huesca (Espanha), ergue-se um reino majestoso digno de uma paisagem de Tolkien. São os Mallos. O fantástico e sublime reino dos Mallos. E, à medida que penetramos nesse mundo desmesurado de torreões e ameias compactadas pela sedimentação, que receamos ver surgir a todo o momento soldados gigantescos de lança em riste combatendo dragões alados. Mas não. Só o silêncio e o chilrear da passarada perturbam a paz do local.
Os castelos imaginários de há pouco dão lugar a curiosas configurações rochosas do período terciário, em forma de charutos que crescem a caminho do céu. São colunas sedimentares que apontam os seus dedos gigantes para a extensa mancha azul onde voam abutres leonado. Os senhores dos ares procuram em terra restos de comida para as suas crias esfomeadas. Nos flancos verticais das altas paredes íngremes equilibram-se os ninhos dessas rapinas de mau agoiro enquanto as águas esverdeadas do suave rio Gállego deslizam pelo vale.
A aldeia de Riglos é o ponto de partida para a ascensão. Subimos em esforço, sob a torreira, encharcando camisas e colarinhos. O sol verga o corpo e as vontades. Os passos tornam-se penosos, lentos, pesados e o suor corroí-nos. A farta vegetação rasteira é pouco a pouco substituída por pequenos bosques de buxo. À medida que a inclinação aumenta, a respiração torna-se ofegante e o esforço exigido é ainda maior. Mas assim que atingimos as alturas dos abutres e os avistamos de asas abertas deslizar suavemente nas correntes de ar, sentimos que conseguimos. E depois lá em baixo, de novo os Mallos como que peças de barro moldadas pelas mãos de um hábil oleiro.
O estreito carreiro de terra batida continua a subir e espreguiça-se em curvas dóceis ao longo da encosta até um miradouro onde uma vista ampla abrange todo o vale verdejante. A ascensão continua com o cenário dos Pirenéus nevados em pano de fundo até chegarmos a um cemitério de árvores secas, hirtas, mortas em contorções de agonia. Troncos jazem aqui e ali. Outras, ostentam uma cabeleira de ramos desgrenhados em forma de forquilha enquanto mostram garras de rapina prontas a nos apanhar. Parecem harpias descarnadas com o esqueleto à mostra. Preparavam-se para encenar um ballet macabro mas os passos ficaram petrificados no ar, sem vida, à espera da redenção. Logo nos afastamos deste lugar danado para atravessar um bosque refrescante até chegarmos à joia da coroa. A larga abertura entre as principais colunas dos Mallos que dá acesso a toda a planície envolvente. É a vista mais estonteante. Dois paredões enormes, talhados a pique, e, no meio deles, o vazio do nada abrindo para o horizonte de um vale encantado onde apenas faltam os unicórnios. Fabuloso, épico. Parece a porta de entrada para o templo de algum gigante, ou de um mundo sobrenatural, ainda virginal, em completo estado puro. Uma colossal proeza da natureza digna de um Sansão ou de um Hércules extraordinário.
Apesar do perigo, escaladores temerários arriscam a vida, colados à parede rosa salmão. São heróis das alturas, senhores das vertigens e agarram-se com desespero e firmeza à argamassa cilíndrica atando cordagens que os prendem à vida como se fossem o seu próprio cordão umbilical. Buscam uma vitória que só a eles pertence. Nada os assusta. Procuram derrotar o invencível, vencer o impossível em busca de glória no pódio da coragem. Entretanto, lá em baixo, ouvem-se os melódicos gorgolejos do rio Gállego a caminho do mar. Atentos, os abutres acompanham o corajoso avanço desses valentes com voos circulares interessados. Têm tempo. Muito tempo. É o seu território que está a ser invadido e uma queda pode ser a recompensa pela sua longa espera. O sol começa a esmorecer e ao mesmo tempo a fraca luminosidade vai incendiando as paredes dos Mallos que ficam cor de laranja. Mas, pregados às paredes como aranhas, os escaladores continuam a tecer a sua teia de cordas e laços – escalada é decididamente uma actividade muito técnica e exigente. Preparam-se para passar a noite agarrados à encosta desafiando o abismo.
O manto negro das trevas vem cobrir tudo com a sua vasta sombra, escurecendo as almas e espalhando os segredos. É noite. Noite negra. Só algumas estrelas cintilantes insistem ainda em fazer companhia aos candeeiros da aldeia de Riglos, agora deserta. A povoação adormece assim aninhada aos Mallos, tranquilamente à espera do dia seguinte, e dos novos visitantes que também partirão espantados com a existência deste fabuloso reino cor de sangue.
Gosto de artigos assim, artigos que me metem nas veias o desejo de ir ver e sentir com os meus próprios olhos o que me é dito. Parabéns.